terça-feira, 20 de setembro de 2022

V Camp. Bras. de Bocha – 2003 – Petrópolis/RJ


V Campeonato Brasileiro de Bocha – 2003 – Petrópolis/RJ.

 
Nardélio Fernandes Luz
 
Petrópolis era realmente uma cidade linda, com suas mansões espetaculares – várias em estilo europeu – entranhadas nas verdejantes montanhas do Rio. A única coisa lá que não me agradou, foi o frio. Detesto frio!
 
Como previsto, saímos da APARU na terça-feira às vinte e uma horas, num ônibus emprestado da Universidade Federal de Uberlândia. Dois motoristas se revezaram todo o tempo, de modo que o ônibus só parou em lugares estratégicos, para as necessidades básicas do grupo. Como algum tempo antes – numa viagem de turismo que fizemos ao Rio de Janeiro –, viajamos pelo estado de São Paulo. Além das estradas do estado vizinho ser bem melhores que as de Minas, a maioria das paradas possui banheiros adaptados para deficientes – o que para muitos é imprescindível.
 
Já no estado do Rio, descemos a vertiginosa Serra das Araras, deliciando-nos com a belíssima paisagem. Passamos pela periferia da capital carioca, subimos as deslumbrantes serras que dão acesso a Petrópolis e finalmente chegamos ao destino – quinze horas após a partida. Apesar de bastante cansado, senti que ainda podia aguentar muita coisa naquele dia; quinze horas sentado numa posição não foram suficientes para me baquear. Meu corpo estava se adaptando bem às longas viagens, o que era uma bênção para alguém meio nômade – a quem Deus tirou as pernas, mas deu rodinhas.
 
O SESC Nogueira é um belo clube entranhado nas montanhas ricas em vegetação da Mata Atlântica. Assim como todas as outras delegações, ficamos alojados no hotel do próprio clube. Todo o perímetro é possuidor de rampas adaptadas para cadeiras de roda – o que facilitou em muito nossa vida. Participaram do “V Campeonato Brasileiro de Bocha” um total de quatorze delegações, vindas de várias regiões do país. Pude identificar Curitiba e outras cidades do Paraná, Campo Grande, São Paulo, Mogi das Cruzes, Guarujá, Uberaba, Rio de Janeiro, Petrópolis e outras. Nossa delegação foi composta por dezesseis pessoas: seis atletas, seis apoios, a técnica, a coordenadora da APARU e os dois motoristas. As outras delegações tinham composição semelhante ou acima, porém, não ultrapassando dez atletas.
 
Ao chegarmos naquela quarta-feira, almoçamos, descansamos cerca de hora e meia e em seguida participamos da abertura dos jogos. Eu, Valmir – meu companheiro de equipe – e vários atletas de outras delegações, tivemos que passar por uma classificação, que define se o atleta está dentro dos padrões físicos exigidos para praticar o bocha e o enquadra na classe específica.
 
Várias partidas foram realizadas naquela mesma tarde, inclusive minha primeira – na qual venci sem muitas dificuldades uma atleta de Uberaba. O Cowboy – apelido do Valmir – foi derrotado na sua primeira participação, em decorrência do nervosismo inicial, mas após algumas palavras de incentivo, se viu apto a continuar lutando.
 
O Bocha é dividido em quatro categorias: BC-1, BC-2, BC-3 e BC-4 e estas são classificadas por nível de deficiência. A BC-4 – da qual eu e Cowboy fazemos parte – inclui os tetraplégicos que não possuem movimento de tronco e os membros superiores são comprometidos, mas ainda conseguem lançar a bola com a mão – com uma delas ou as duas ao mesmo tempo.
 
Sendo marinheiro de primeira viagem, fiquei surpreendido com a organização e o alto nível da competição. Os árbitros eram compostos por professores e estagiários de Educação Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Houve também a presença na abertura e encerramento de membros do Comitê Para-olímpico Brasileiro, assim como outras autoridades do esporte para-olímpico e principalmente do bocha.
 
Apesar de bem agasalhados, no segundo dia de competição o frio castigou ainda mais que no primeiro. Saímos do hotel e chegamos às quadras com os dentes cerrados e batendo queixo, ainda assim, consegui minha segunda vitória, derrotando um atleta fortíssimo de Mogi das Cruzes. A partida foi muito disputada e em várias jogadas arrancamos aplausos entusiasmados de ambas as torcidas – o que faz muito bem ao ego do atleta. O Cowboy obteve sua primeira vitória na segunda partida, e apenas um dos atletas da APARU perdeu naquela manhã. Estávamos indo bem.
 
O frio apertou ainda mais e – acreditando não ter mais nenhuma partida naquele dia –, após o almoço no restaurante do hotel, subi para o quarto. Entretanto, assim que Douglas – meu sobrinho e apoio – me deixou debaixo de grossos cobertores, chegou o aviso inesperado de que eu ainda iria competir naquela tarde. Voltei ao ginásio às pressas, quase congelando de frio – sequela da lesão-medular severa de um tetra – e nem um copo de café quente deu jeito nos tremores do meu corpo. O frio intenso causava espasmos nos meus braços e isso destruiu a pouca concentração que havia conseguido naquela última meia-hora.
 
Eu já estava na disputa da medalha de prata na categoria individual BC-4 e – ainda que meu corpo estivesse em condições normais – seria muito difícil vencer aquele adversário com oito anos de experiência no bocha. Como se a experiência não bastasse, a deficiência do cara não era por lesão medular, portanto, não era tão castigado pelo frio. No mais, era da fria Curitiba e o clima de Petrópolis era como se fosse seu habitat.
 
Dei o máximo e consegui complicar um pouco a partida, mas de nada adiantou e fui derrotado. O Cowboy venceu a outra semifinal e garantiu, ao menos, a medalha de prata para nossa equipe – o que me deixou feliz e amenizou parte da frustração. Após minha primeira derrota, voltei ao hotel e o frio era tanto que não deixei os cobertores nem para descer ao restaurante. Douglas levou-me o jantar no quarto.
 
No terceiro e último dia de competição, o sol despontou timidamente por trás das montanhas enevoadas da ex-região imperial, mas, ainda assim, o vento frio enregelava a pele e não encorajava a tirar os agasalhos. Alguns adolescentes corajosos – entre eles meu sobrinho – se arriscaram nas águas gélidas das piscinas.
 
A experiência do meu adversário dominou a partida e perdi também a medalha de bronze da categoria individual. Ainda assim, recebi elogios dos organizadores e até de membros de outras delegações, ao saberem que eu treinava apenas a dois meses  e uma vez por semana. O quarto lugar numa competição com atletas de tão alto nível – levando em consideração minha inexperiência – era algo admirável segundo eles. Todos me incentivaram a continuar e era exatamente o que pretendia fazer. Antes eu treinava pelo exercício físico – que é quase nulo neste esporte – e oportunidade de viajar, mas minhas prioridades mudaram ao sentir que realmente podia competir.
 
Nossos dois maiores candidatos a medalhas não tiveram muita sorte. Daniele, a atleta da classe BC-3 – joga com o auxílio de uma calha – mais forte da nossa equipe perdeu para uma garota excepcional de São Paulo. Múcio – o BC2 que possui várias medalhas e experiência internacional – não foi de todo mal, pois ficou com o bronze da sua classe, mas ainda assim podia ver a decepção estampada em seu rosto.
 
O Cowboy foi uma das grandes surpresas. Numa partida emocionante, em que o vimos tremer na base contra um jogador excepcional de Mogi das Cruzes – favorito da classe BC-4 –, conquistou a medalha de ouro. Silvia – que joga com os pés – ganhou prata por pontuação na classe BC-1.
 
Ainda tinha a disputa em duplas. Eu e Cowboy superamos equipes de peso, como a do Rio de Janeiro, e ganhamos bronze. A prata ficou com a dupla de São Paulo e o ouro com a fortíssima dupla de Mogi das Cruzes. Em verdade, não houve qualquer surpresa nos jogos em duplas.
 
Tive que estudar as principais regras do jogo numa apostila dois dias antes da competição, mas valeu a pena o esforço. Não posso negar que foi emocionante conquistar uma medalha – ainda que de bronze – em um campeonato nacional com atletas de nível internacional. Foi colossal a sensação da medalha e mesmo o quarto lugar na categoria individual representou uma vitória bastante significativa.
 
A premiação foi no salão de cerimônias do hotel, e a maior surpresa foi o terceiro lugar conquistado no geral pela nossa equipe. O Troféu de terceiro lugar é maior e mais bonito que a maioria dos primeiros lugares que já vi por aí e ficará na sala de troféus da APARU, dando um lugar de destaque ao bocha – ao lado de modalidades para-desportivas de maior expressão como o basquete, tênis de mesa, vôlei e atletismo. Uma conquista extraordinária da turma de sequelas severas.
 
Após a premiação, houve baile no salão do bar do clube, com participação da maioria dos atletas. Algumas delegações – inclusive da nossa vizinha Uberaba – resolveram partir naquela mesma noite. O baile foi animado por uma banda carioca – cuja escultural vocalista cantava e encantava a todos com voz de sereia. Nunca vi tantas pessoas dançando em cadeiras de rodas ao mesmo tempo. Quanto a mim – possuidor de experiências amargas no quesito dança em cadeira de rodas –, optei por ficar quieto num canto, curtindo um bom papo, merecidas cervejas e duas ou três caipivodkas.
 
Na madrugada – ao fim do baile, quando a maioria fora dormir – eu e alguns da minha equipe fomos para um barzinho fora do clube. Uma garoa gelada caía – molhando vagarosamente tudo que tocava –, mas o álcool presente nas minhas veias não me permitia sentir muito frio. O bar tinha as portas fechadas e alguns elementos de aspecto estranho vieram ao nosso encontro. Inicialmente apreensivo, tranquilizei-me ao sermos recepcionados pela equipe de São Paulo – detentora do troféu de primeiro lugar do campeonato. O bar estava apinhado e a fumaça no ar lembrava os saloons do velho oeste. À meia-luz, uma pequena banda local alternava vários estilos de músicas, do pagode e sertanejo ao rock brasileiro e internacional. Toda a equipe de São Paulo comemorava sua grande vitória e logo fomos contagiados.
 
Voltamos ao hotel na alta madrugada. Levantamos as onze, almoçamos as doze e, por volta das treze, deixamos a bela e fria Petrópolis, rumo ao aconchegante calor de Uberlândia. Na volta viemos pelas rodovias 040 e 262, onde pude constatar que – exceto em alguns poucos trechos – as estradas mineiras não estavam tão ruins assim. O que deixa muito a desejar é a falta de banheiros adaptados para deficientes nas paradas. Encontramos adaptações mais ou menos decentes apenas em Contagem e Luz.
Chegamos a Uberlândia por volta das quatro da matina. Na bagagem trazíamos uma medalha de ouro, uma de prata, três de bronze, o troféu de terceira melhor equipe do Brasil, peitos cheios de orgulho e a esperança de um futuro de treinamentos e vitórias mais significativas. No mais, sonhar não paga nenhum imposto... Por enquanto.
 

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