terça-feira, 28 de março de 2017

Hi-Fi





Hi-Fi

Todos os dias, pontualmente as sete, dona Silvia e dona Vilma — vizinhas há décadas — saem de suas casas com vassouras em punho e grande empolgação para discutirem os capítulos das novelas, exibidos na noite anterior.
A essa altura ambas já serviram o café e despacharam os maridos para o trabalho e os filhos para a escola, estando livres para o ritual diário de varrer as folhas das Sibipirunas da praça em frente, que na primavera tecem um belíssimo tapete amarelo sobre o gramado e as calçadas.
Mas naquela manhã dona Vilma se atrasou alguns minutos e, quando saiu, encontrou dona Silvia “nos cascos”.
— O que houve, mulher? — a recém-chegada indagou cautelosa.
— Foi o descarado do vizinho que me faltou com respeito! — dona Silvia respondeu naquela irritadiça voz aguda. — Só não chamei a polícia para evitar fofocas e...
— Mas, qual vizinho?
— Walter Pilico, o viúvo grisalho de Araxá, 66 anos, comerciante, cuja esposa morreu de câncer, pai de uma filha e dois filhos, dois netos, que se mudou sozinho para a casa à esquerda da minha anteontem...
— O que aconteceu de tão grave, Criatura? — tornou a indagar dona Vilma, já aliviada da preocupação por conhecer bem a amiga.
— Imagina que enquanto eu a esperava, ele saiu para pegar o jornal. Usava apenas bermudas e camiseta regatas que lhe ressaltava a musculatura e...
— Sim, mas e daí? — a recém-chegada já perdia a paciência.
— E daí que — a irritação de Silvia crescia — gentilmente ofereci uma xícara de café fresquinho e ele não aceitou.
— Mas que mal há nisso?...
— “Devido à gastrite não posso aceitar o cafezinho, mas agradeço e aceito sua senha do Wi-Fi.” — Foram essas as palavras exatas do safado!
— E o que vem a ser Wi-Fi, Silvia?
— Não faço ideia, mas só pode ser alguma sem-vergonhice!

Nardélio Luz

segunda-feira, 13 de março de 2017

Rebeldia



Rebeldia

Eu não me lembro do lado de lá,
Mas não me impede de acreditar,
É questão de amar este lado de cá,
Pois melhor que esta vida não há.

Um dia, quando desta me cansar,
E minha validade aqui se expirar,
Pode ser que venha a desanimar,
Mas uma fagulha permanecerá.

E quando a morte vier me buscar,
Será decepcionante, posso apostar,
Pois decerto não haverá de gostar,
Do que neste ser ela encontrará.

Já que por certo irá testemunhar,
Um eu resoluto, disposto a lutar,
Para esta hílare vida prolongar,
E seu trabalho macabro adiar.

Certamente alguém irá decretar,
E logo do além chegará o alvará,
Mas a mim não será fácil levar,
Pois jamais irei me entregar.

Nardélio Luz
040317

sexta-feira, 3 de março de 2017

Desatinos



Desatinos


No aprazo da tua presença, eis que vivo;
Como a criança guiada pela ingenuidade.
Sigo reto, sem qualquer revés ou esquivo:
Pulcra encarnação da própria felicidade.

No suplício de não tê-la, eis que morro;
É uma doença que aos poucos se espalha.
Esvaído, tenho como opções de socorro:
A lenta ausência ou o gume da navalha.

Dê-me o bálsamo que anseia este peito;
Aplaque os prantos deste velho coração;
Olvide a atmosfera que incute este leito;
Explane a voz que alforria nossa canção.

Desta ossada que geme de fome e sede,
Rebenta o clamor que segreda e zomba:
Diz que é apenas um retrato na parede,
E como tal, a consciência me assombra.

Desfaça de vez tua mortalha nevoenta!
Abone aclaração: esta alma vos suplica!
Descarte o vil que a concebe e ostenta,
Nesses moldes que a ciência não aplica.

Beije-me com doce placebo da loucura,
Seguindo por me deixar à própria sorte.
Pois que a febre que arde não tem cura,
É irrelevante testificar a minha morte.


Nardélio F. luz
270217-03:19