domingo, 13 de novembro de 2016

Velha Infância



Velha Infância


Antes eram minhas irmãs com as brincadeiras na rua
E, por mais que eu chorasse a nossa mãe não permitia
Que, eu, reles moleque minúsculo, saísse depois da lua.
Caramba, como eu sofria! Parecia a pior dor do mundo,
E jurava para o pijama que quando crescesse, por mais
Que a mãe sofresse, não obedeceria nem um segundo.

Desde que aprendi a ler, foi meu amor à primeira vista,
Mas odiava a cartilha da escola e uma tal “Onça Gabola”;
Meu vício era os gibis de heróis, que chamava de revistas.
Batman foi o meu primeiro e o Super-Homem o segundo;
A Mulher Maravilha, Flash, Aquaman, os Super Gêmeos,
E todos os Superamigos, na missão de salvar o mundo.

Tinham também os hilários, não havia qualquer bronca,
Fosse do Gato Félix, Abbott & Costello ou Recruta Zero,
Eu lia todos os títulos, de Disney até a turma da Mônica.
Mas em verdade, os de super-heróis eram os preferidos,
Pois me via na pele do Batman, com a máscara pavorosa
E as botas especiais de meias: era o terror dos bandidos.

Qualquer espaço vazio visualizava um campo de futebol,
Convocava a molecada nos dias que não tínhamos aulas,
E lá estávamos com as enxadas, trabalhando de sol a sol.
Dedos quebrados e unhas arrancadas era parte da rotina,
Não ligávamos para as raízes nem pontas de toco na terra
E qualquer um que chorasse, nós taxávamos de menina.

As fogueiras nas calçadas de terra marcavam a reunião
E entre batatas e milhos roubados, assando nas brasas,
Borrávamo-nos de medo dos “causos” de assombração.
Os velocíssimos patinetes, vulgos carrinhos de rolimãs,
Que, à noite, sob as luzes dos postes, riscavam a calçada
Da igrejinha bem cuidada, amofinando as pobres irmãs.

Das latas de bolas de gude que chamávamos de bilocas,
Enterradas em esconderijos secretos, sabidos por todos,
Fossem sob o alicerce da casa ou nas moitas de tabocas.
Das pipas e papagaios multicores que subiam ao espaço,
Venciam aqueles que, como eu, tinham o melhor cerol,
Cortando todas as linhas com o máximo estardalhaço.

Meu irmão, pouco menor, era meu dever protegê-lo,
Me seguia por onde eu ia, fazendo tudo o que eu fazia,
E mesmo quando brigávamos, não perdíamos tal zelo.
Minha incansável mãe trabalhava por nós dia e noite;
Eu, com minhas estripulias, apanhava quase todo dia,
Mas era muito raro um dia, que não merecia o açoite.

Todo sábado tinha Lassie, Zorro e Tarzan na televisão,
Reuníamos na bondosa vizinha, que tinha tal aparelho,
E como éramos pura terra, acomodávamos ali no chão.
Depois dos filmes, uma matinha era a nossa selva ideal;
E por hoje não sei de onde tirei esta vertigem de altura,
Pois saltava entre as árvores com agilidade sem igual.

Balançar em cipós, futebol na rua, caronas de trem,
Caverna no barranco, casa na árvore, nadar nos rios,
Salve a latinha, polícia e ladrão... tinha isso também.
Quão privilégio crescer naquele tempo tão divertido!
Violência não existia, exceto as poucas brigas de rua;
E como foi delicioso meu primeiro beijo escondido!

Como é gostoso recortar este período do passado,
No qual para se ter brinquedos, exigia criatividade,
Quase nada vinha pronto e fazíamos de bom grado.
Porém um dia a gente cresce e tudo fica à distância,
Feliz de quem aproveita os seus tempos de criança,
Pois depois só o que resta é a saudade da infância.


Nardélio Luz

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Indelével



Indelével


Nesse misto de pantera mansa
Com o fragor indômito da razão,
Não finda minha parca esperança,
Mas não permite aflorar emoção.

De mulher com ação irrefreável
À encantadora fêmea na alcova;
Personagem deveras admirável,
A poesia de Fellini à Almodóvar.

Ainda que por uma única noite,
Deixaste tuas marcas no meu ser,
Agora a saudade é como o açoite,
Mas ainda acalenta o meu viver.

É uma imensidade do que é bom
E tudo o que vale a pena recordar,
Dos mais de 50 cinzas, único tom,
O pecado que anseio perpetrar.

Quiçá só habite minha memória,
Pois que insiste jamais te esquecer;
Ainda trago tão belos dias de glória
Tatuados numa noite de prazer.

Mesmo que a razão tente vencer
E o coração seja relegado a depois,
Ouça o que a tua alma está a dizer:
Todo futuro se resume a nós dois.


Nardélio F. Luz

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

No Acampamento



No Acampamento

Afastei-me da fogueira e sentei pensativo num velho tronco à beira do rio. Estava tão absorto com os ruídos noturnos e a contemplação da lua que tive um pequeno sobressalto ao sentir a mão dela no meu ombro.
— Será que vai chover?
— Está se formando algumas nuvens — apontei com o queixo para a lua quase escondida, sem ter certeza se ela notou meu gesto na penumbra —, mas se chover será lá pela madrugada.
— E você não trouxe barraca, não é? — o sorriso dela era encantador.
Voltei os olhos para o acampamento onde nossos amigos se divertiam ao som do violão.
— Não achei necessário. Mas se for preciso, pegarei uma beirada com alguém.
Coloquei um tom malicioso nas últimas palavras, mas ela não pareceu notar a brincadeira. Era a jovem mais doce e inocente que já havia conhecido. Esbocei novo sorriso e optei por não ser inconveniente.
— A lua está linda — mudei de assunto, sem qualquer ênfase na voz.
— Está mesmo — ela concordou, enquanto se sentava ao meu lado no tronco apodrecido.
Éramos amigos. Tão amigos que nunca antes a tinha notado como mulher, mas naquele momento senti algo inusitado. Talvez tivesse exagerado na vodca com abacaxi a ponto de exacerbar minha libido, ou fora o perfume dela trazido pela suave brisa noturna. Não sei. E para ser sincero, não é relevante. O fato é que minha amiga era muito bonita e de repente todos os meus sentidos passaram a captar sua feminilidade. Ela amava outro, eu amava outra. E ambos tínhamos sido traídos recentemente.
— Não está com frio? — ela se referiu ao fato de eu estar sem camisa, pois todos estivemos nadando antes de começarmos a beber.
— Não — respondi simplesmente. — O clima está gostoso.
— Eu preferi me trocar, para evitar qualquer resfriado — ela quase sussurrou.
— Que perfume você usa? — indaguei, observando suas malhas leves.
— Não é perfume, é loção hidratante para o corpo.
“E que corpo!”, pensei ao mesmo tempo em que sentia algo novo; incômodo, mas delicioso.
— “Algodão”, da Natura. Gosta?
— Muito.

Nardélio Luz

031116