segunda-feira, 3 de julho de 2023

Más Decisões


Más Decisões
 
 
— E agora José? — quase gritei, socando inutilmente o volante.
 
— Hã?! Quem é José? — Jane indaga, desconcertada, aparentando um pouco menos nervosa que eu.
 
— Nada não! — respondo rápido, tentando disfarçar um pouco a irritação.
 
— Aposto que Drummond nunca passou por um perrengue desses! — ela demonstra finalmente ter entendido a alusão ao poema, na minha tentativa de desabafo.
 
— É claro que não! — exclamo laconicamente, enquanto aciono a maçaneta da porta.
 
Fora do carro, o frio só perde em intensidade para a escuridão, quase total, apesar do mostrador fluorescente no relógio de pulso dizer que são apenas 19:47.
 
— Fique aí dentro! — quase ordeno à Jane. — Está muito escuro e frio aqui fora.
 
Não posso ver na escuridão, mas posso imaginar o belo rosto feminino crispado pela irritação, quando ela quase grita:
 
— Eu te avisei! Eu te avisei!!!
 
— Avisou o que, criatura? — quase grito também.
 
— Que deveríamos ter deixado para ir amanhã cedo e...
 
— Não seja histérica! É apenas um pneu furado, o trocarei rapidamente!
 
— Você sabe... — o medo é bem definido na irritada voz de Jane — Você sabe o que dizem sobre essa região... essa estrada e a maldita floresta!
 
— Isso não passa de crendices, querida! — tentei parecer mais calmo, a fim de evitar outra discussão inútil. — Fique agasalhada aí dentro, em meia hora estaremos em marcha novamente.
 
— Você e suas decisões idiotas!!!
 
A irritação dela é tamanha que, se pudesse, me esganaria, mas faz uso do bom senso e segue meu conselho, fechando totalmente a porta e impedindo que o ar gelado — ou qualquer outra coisa — entre no carro.
 
Observo em vão os arredores. Uma densa neblina parece penetrar meus ossos, causando tremores pelo corpo todo e contribuindo para a escuridão total nesse trecho de floresta, cujas copas das árvores quase se juntam sobre a estrada, formando uma espécie de túnel que mesmo durante o dia é anormalmente frio o umbroso.
 
Desde que mudamos para o lugarejo, há pouco mais ou menos três anos, temos ouvido histórias de acontecimentos estranhos nesse trecho da estrada. Acidentes violentos, desaparecimentos... e variadas histórias de tirar o sono de pessoas impressionáveis.
 
— Veste a blusa! — ouço a voz de Jane, abafada pelos vidros fechados.
 
Abro a porta traseira somente o instante de pegar a jaqueta sobre o banco e pedir a ela que acione o botão do porta-malas. A luz dos faróis tenta penetrar as trevas, mas torvelinhos de neblina rodopiam à frente, parecendo zombar da tentativa.
 
A pouca luz que sai das janelas proporciona uma leve penumbra, suficiente para mostrar o quão os pneus estão próximos de uma vala de escoamento pluvial. Um arrepio percorre minha espinha do cóccix à nuca, enquanto caminho colado ao carro para evitar cair na vala.
 
“Tenho que me lembrar de comprar uma lanterna”, penso, irritado comigo mesmo.
 
O barulho ao deslocar o pneu de estepe sob o tapete parece exageradamente alto, e só então me dou conta do total silêncio do lugar. Nenhum barulho do vento nas árvores, nenhum grilo, nenhum animal noturno, nada. Tudo ao redor é estranho, macabro, como se não fosse capaz de suportar vida.
 
Novamente o calafrio na espinha, desta vez acompanhado de lágrimas furtivas.
 
Com alguma dificuldade, arrasto-me pela estrada, a fim de evitar a vala do acostamento. O peso do pneu na mão direita e do macaco e chave de rodas na esquerda proporcionam algum equilíbrio, mas me fazem arquejar e gemer, evidenciando o quanto estou fora de forma.
 
Um sorriso amargo desfigura meus lábios, zombando da vã promessa silenciosa de voltar a me exercitar e do cuidado idiota de andar rente ao carro, mesmo sabendo que dificilmente poderia ser atropelado por outro veículo nessa via morta.
 
A chave de rodas em L escorrega dos meus dedos e produz um estridente barulho metálico ao tocar o estranho calçamento de pedras, semicoberto pela poeira e folhas secas.
 
O barulho, alto demais nesse silêncio sepulcral, aumenta a sensação de medo que iniciou quando saí do carro e vem crescendo desproporcionalmente, arrancando-me um pensamento em voz alta:
 
— Termine logo com isso e dê o fora desse lugar!
 
— Falou comigo? — a voz de Jane surge, quase inaudível, evidenciando que está atenta.
 
— Não... Não! — trato de responder logo, antes que ela tenha a ideia de sair do carro.
 
Ajoelho-me próximo ao pneu murcho e, usando mais o tato do que a visão na semiescuridão, começo a desapertar os parafusos.
 
A raiva pelo meu descuido de não ter uma lanterna afugenta parcialmente o medo e a estranheza por aquele trecho da estrada ser calçado de pedras totalmente irregulares, como nas ruas antigas das cidades históricas, pavimentadas à sangue e suor dos infelizes escravos.
 
A penumbra proporcionada pelos faróis à frente e a pouca luz interna que sai das janelas é suficiente para ajudar a identificar o suporte do macaco e, com a ajuda do tato, o ajusto e aciono a manivela. A frente do carro começa a se erguer e ouço a música suave brotando abafada do interior, contrastando com o silêncio externo: "Now I send what I can to the man..."
 
“Muito bem, Jane encontrou uma bela distração”, penso satisfeito.
 
A balada melancólica incute algum ânimo e acelero o trabalho, sentindo as gotas de suor brotarem sob a roupa, apesar do frio anormal.
 
Consigo deslocar o pneu murcho e, ao forçá-lo para fora, sinto uma dor aguda na mão direita. Não consigo conter um xingamento e, ao recolhê-la instintivamente, vejo o líquido escuro e espeço escorrendo abundante.
 
— Merda!!! Merda!!! — A expressão sai bem mais alta que a música abafada, mas por sorte Jane não ouve.
 
Enquanto enrolo uma flanela suja de graxa na mão ferida, examino melhor o pneu e identifico o que causou o furo e, também, o corte na minha mão: uma espécie de lâmina curva, à primeira vista confeccionada toscamente de osso.
 
Novamente o calafrio percorre a espinha, tão incômodo quanto a dor na mão e o suor já abundante que gela na minha fronte.
 
Pode ser minha imaginação, mas pela primeira vez ouço um som vindo da floresta, imediatamente do outro lado do carro. O coração ameaça sair pela boca e dou um salto ágil, ficando de pé instantaneamente. O movimento brusco causa uma vertigem e preciso escorar no carro, torcendo para não derrubar o macaco, fixado de forma estouvada no escuro.
 
Consigo ouvir as batidas pesadas no tórax, sincronizadas à incômodas constrições na cabeça. Aguço as vistas, mas não ultrapassam a escuridão nevoenta e o silêncio volta a ser quebrado apenas pela melodia abafada e as inusitadas batidas cardíacas.
 
Jane permanece sentada — com cara de poucos amigos — e nada percebe, reforçando minha desconfiança que aquele ruído de gravetos quebrando não passa de fruto da minha imaginação, exacerbada pelo medo.
 
— Está tudo bem? — ouço a voz abafada de Jane.
 
Limito-me a acenar que sim com a cabeça e me abaixo devagar, ignorando o mal-estar. Outra vez uno a pouca visão ao tato e me ponho a trabalhar o mais rápido que consigo. A quarta música da playlist inicia lá dentro quando termino de apertar o quarto e último parafuso aqui fora. O rangido seco do ferro contra ferro ecoa agudo no silêncio tumular.
 
Arrasto o macaco de baixo do carro e me levanto devagar, com a chave de rodas na mão enfaixada. Neste instante, mais sinto do que vejo o carro sacudir de forma violenta. Sobre a música, Jane grita alguma coisa. Não compreendo as palavras desconexas, mas a luz de teto mostra claramente o olhar de desespero no rosto crispado de pavor.
 
Por cima do carro, diviso um vulto na escuridão, entre caminhando e manquitolando sobre a outra beirada da valeta. Uma segunda criatura logo surge dentro da vala, galgando a borda de pouco mais ou menos metro e vinte com um único salto. Numa fração de segundos, meus olhos arregalados registram pelos espessos, que a pouca luz das janelas não permite definir se são da coisa ou se essa veste trapos de peles.
 
Me abaixo instintivamente, com o coração acelerado. A onda de horror ameaça arrebatar minha sanidade, embotando totalmente o raciocínio.
 
Entre dar a volta pela frente iluminada do veículo e enfrentar as bestas com aquela pequena ferramenta e correr até o porta-malas aberto, na tentativa de achar uma arma mais eficaz, opto pela segunda opção.
 
Tento pensar rápido, encontrar uma linha segura de ação, mas meu raciocínio parece atolado em um pântano lodoso.
 
“Talvez... Se for rápido, posso pegar o mais próximo de surpresa...”, penso no mais completo desespero. “Se jogá-lo na valeta... Entro no carro, acelero e...”
 
Os torvelinhos de neblina fria dançam na penumbra ao redor, como se zombassem da minha impotência na situação desesperadora. As pernas bambas não permitem velocidade, mas tento acelerar o máximo possível de cócoras para alcançar o porta-malas pouco iluminado.
 
À princípio sinto a fisgada aguda nas costas, que logo evolui para uma explosão nauseabunda de dor e pequenas luzes multicores, semelhantes a fogos de artifício. A sensação de algo irrompendo sacode meu corpo numa violência instantânea, e instintivamente abafo o grito de dor para apenas um grunhido, que ainda assim irrompe muito alto nesse silêncio dos infernos.
 
O gosto metálico de sangue alcança minhas papilas gustativas antes mesmo de enxergar a ponta afiada de osso ensanguentado, que brotou de repente no meu peito.
 
Minhas pernas parecem desaparecer e caio de quatro, com a tosse convulsiva expulsando consigo um jorro do espesso líquido escuro. Por um milésimo de segundo alimento a expectativa de racionalizar e entender o que está acontecendo.
 
A agonia não cede e o ar parece pesado demais, impossível de chegar aos pulmões. As lágrimas irrompem descontroladas, trazendo um pensamento totalmente fora de hora:
 
“Jane nunca esteve tão certa! Esta foi outra das minhas malditas más decisões!”
 
As lágrimas transformam a penumbra em escuridão total; a dor excruciante finalmente parece ceder um pouco. Já não ouço mais meu coração, apenas os gritos abafados de Jane e o que parece ser a tentativa de ignição de um motor.
 
A música... parece estar se afastando... Agora toca muito longe, quase inaudível. Bob Dylan bate às portas do Céu: “That long black cloud is comin' down...”.
 

Nardélio Luz

Nenhum comentário:

Postar um comentário