domingo, 17 de julho de 2016

Fuga




Fuga


É para lá das coisas que respiram
Que fica o reino ignoto de onde venho.
É um lugar que ninguém daqui conhece,
Pois quem lá esteve, por certo não voltou.

Lá, a noite se alarga além das horas tardias
E a lua furta a superfície da própria corrida,
Impondo o lampejo de estrelas estranhas,
Numa sinistra configuração alienígena.

Os líquens não escolhem lado para crescer,
Apenas abraçam o tronco podre como salvador,
Ainda que as negras águas oleosas do rio abaixo
Neguem a vida, à colônia ou ao débil suporte.

Seres pequenos e arredios, privados de almas,
Com formas indizíveis e texturas repelentes,
Se arrastam sobre os pântanos infestados,
Sorrateiros, caçando e sendo predados.

Entre cá e lá há um vácuo monstruoso
Arrebatando o sono de qualquer pensante;
Um precipício disforme de escuridão silente
Que engole a quem ouse encarar tal loucura.

Alertei-vos, senhores, pois que não intuiriam
A minha predileção por estas vis correntes...
Mil vezes a constrição eterna das grilhetas
Do que a agonia de lá ter que retornar!


Nardélio F. Luz

domingo, 3 de julho de 2016

Biluxa

https://www.flickr.com/photos/37618484@N07/8682951287


Biluxa


Sentado no velho tronco — cujo cerne secular servira de banco a várias gerações — observei disfarçadamente o velho ao meu lado. A trêmula mão esquerda repleta de calos segurava o prato — já quase sem esmalte devido aos inúmeros tombos — enquanto a direita levava o garfo cheio à boca. Era estranho como ele abria exageradamente a mandíbula, quase rasgando a pele fragilizada pela idade, forçando ao máximo os sulcos queimados de sol. A barba de três ou quatro dias acentuava ainda mais a decrepitude e, sem entender porque, meu coração se enternecia a ponto de lágrimas quase brotarem dos meus olhos. Eu disfarçava e pegava uma garfada do meu próprio prato, não era prudente demonstrar emoção àqueles seres xucros ao redor, totalmente alheios aos meus sentimentos. Meu coração se constringia com a mistura ádvena de amor e pena por aquela criatura simples, que nada sabia da vida fora da fazenda e do arraial que morava à légua e meia dali, mas dava aulas a qualquer mestre acadêmico na disciplina de “viver”. Percurso de légua e meia, aliás, que fizera a pé de manhã e a tarde em pelo menos 60 dos seus mais de 70 anos de vida calejada pelas intempéries. Diziam que Biluxa era apelido, que ele tinha um nome, mas nunca houvera qualquer documento que o provasse. Seus olhos tristes nunca tinham mirado uma cidade e seus pés calejados jamais sentiram a maciez do couro de um sapato, mas aquilo não o incomodava em absoluto, já que ali tinha tudo o que precisava para viver. Com a angústia apertando inexplicavelmente minha garganta, larguei o prato pela metade, a comida tinha esfriado. Ele colocou o dele — já vazio — de lado sobre o tronco, sacou palha, canivete e um pequeno pedaço de fumo da algibeira. Sem fazer ideia da minha admiração, aquele ser quase mítico intercalou as fedidas baforadas com alguns dedos de prosa dirigidos a um ou outro dos companheiros, sobre qualquer assunto que lhe vinha à telha grisalha. Era um anjo num oásis de paz, livre do jugo religioso e de toda e qualquer degradação humana. Deve ter subido direto para o céu, pois embora sábio na arte de viver, partiu deste mundo quase tão inocente quanto chegou, e sem deixar qualquer desafeto.


Nardélio F. Luz