quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Atormentado

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Atormentado

E seria suficiente o amor?
Ah, não... Decerto que não!
Amargamos guerras pela vida,
Resumidas a dois contra mais.
Neste mundo de hostilidades
Onde a poesia se tornou pecado
E toda a arte ardeu na fogueira,
Não há paixão, não há mais.

Ela fora arrastada rudemente
E seu nobre coração sangrou
Sobre as páginas amarelentas
Do alfarrábio pseudo sagrado.
E atado a grilhões traiçoeiros,
Jorrei lágrimas de luto e raiva;
Meu sangue verteu das chagas
E o espírito jazeu alquebrado.

Não há lugar para o sublime,
O pulcro das velhas histórias
Ou a perfeição da franqueza
Que execram os ominosos.
Apenas para a intolerância
E o ardil perverso dos altos,
Que espezinham os baixos
Sob os coturnos lustrosos.

Segundo as velhas histórias,
Em tempos remotos já houve
Dias de luz e noites tranquilas
Em que se ouviam anjos no céu.
Mas não mais... Ah, não há mais!
Nestas presentes paragens frias,
A liberdade é fantasia proibida
E a felicidade um delírio cruel.

Dissimulam-se no que é sacro
Para abonar as tais lambanças,
Mas na surdina de seus antros
Reverberam os risos infernais.
Tornando as crenças paródias,
Celebram a morte como diva
E o profano como professor
Em furtivos ritos abissais.

E aqui, neste negro calabouço,
Na companhia única dos ratos,
Donos da minha carne e ossos,
Esbarro no consolo da loucura.
Aguardo o adágio dos togados,
E, por conseguinte, o cadafalso,
Para encontrar a minha amada
Na outra vida, pós-sepultura.

A dor? Ah, com essa aprendi...
Nela eu submergi estraçalhado,
Mas resisti ao assédio da vingança
Nesta mestral escuridão silente.
O amor? Ah, sim... O amor!...
Esse aqui pode não mais existir,
Mas lá para onde anseio ir...
Lá sim, o amor é suficiente.

Nardélio F. Luz

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Mulheres Songamongas x Mulheres de Fibra

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Concordo plenamente com a escritora Lya Luft no que diz respeito a um dos seus belos textos que recebi de uma amiga via e-mail, com o título “PQP”. Nesse há frases como: "Não existe isso de homem escrever com vigor e mulher escrever com fragilidade”, “Essas mulheres frageizinhas, que fazem esse gênero, querem mesmo é explorar seus maridos” e “Eu quero escrever com o vigor de uma mulher. Não me interessa escrever como homem".

Sem dúvida a escritora se refere à literatura, contudo, a pertinência de suas frases vale para tudo o mais na vida da mulher, sobretudo a preferência dos homens.

Em outras palavras, mulher “songamonga” — que fica esperando tudo de mão beijada e não toma nenhuma iniciativa — há muito está fora de moda. Assim como também estão as que acham que nós homens somos superiores, que têm que ser submissas — dizem que há uma passagem da bíblia que afirma isso, mas lembro a todos que esse livro foi escrito há mais de dois mil anos e numa região cujos costumes se diferem dos nossos. Também está em desuso a mulher crer que as responsabilidades maiores são nossas e os direitos delas, ou vice-versa; ou mesmo aquelas que teimam em tentar imitar-nos.

O perfil da mulher do texto é o que eu e a maioria dos homens de personalidade amaríamos. Que dá o melhor de si no que faz, fazendo do seu jeito, sem se importar se está melhor ou pior que o do homem. Que respeita, mas acima de tudo exige ser respeitada. Que não se sujeita a abusos de qualquer espécie, que goze — escandalosamente ou não — sem qualquer resquício de constrangimento, e nada faça sem que esteja com vontade. Que não aceita o açoite, seja ele físico, moral ou psicológico. Que trabalha, estuda e dá duro para criar e educar os filhos sim, mas que exija o mesmo dos cônjuges e não aceite menos. Afinal, caso contrário cabe bem a máxima “antes só do que mal acompanhada”.

Foi uma assim que amei muito um dia. E é uma assim que estou aprendendo a amar hoje. A respeito, por tudo que é e representa. Pela força extraordinária que possui, pelo quanto é doce quando tem que ser e pelo quão endurece quando é necessário. A admiro como mulher guerreira, que conquanto tenha seus momentos de fraqueza e desalento — comum a todos nós —, persevera onde a maioria desiste e vence onde outras sequer sonham chegar. Por saber a hora de sentar na calçada e descansar, antes de prosseguir com a caminhada. A amo por exigir respeito, mas não antes de dar o exemplo. Por entender que um pouco de ciúme é bom, mas o excesso atrapalha e causa sofrimento mútuo sem nenhuma necessidade. Ela me fascina por confiar em mim, mas, sobretudo confiar em si mesma, a ponto de entender que um homem sem liberdade jamais conseguiria ser feliz.

Conquanto eu tenha tentado com mulheres submissas e sujeitáveis em certas alturas da minha vida — que afirmavam amar, sem ao menos ponderar sobre o verdadeiro sentido da palavra —, meu sentimento não passou de interesse superficial ou meramente sexual, que desfaleceu na primeira decepção real. Era mais uma prova da efemeridade da beleza física perante os portentos da inteligência e simplicidade, que me encantam desde sempre. Aquele amor por uma mulher de fibra — dona de iniciativa e personalidade forte — que me embalou anos a fio, só foi substituído no meu coração pelo Amor Sublime que poucos conhecem, esse que permite amar sem tocar e sentir saudade sem dor.

Claro, já fui tachado de radical, e muito provavelmente o seja, mas prefiro acreditar que sou exigente — como todos que se prezam deveriam ser —, bem como espero isso de qualquer mulher que, por ventura, venha me relacionar. Afinal, ser exigente é a prova cabal de que se ama, e é óbvio que para uma pessoa amar outra, antes precisa se amar de verdade. Quem diz “amo fulano (a) mais que a mim mesmo”, é fraco, mentiroso, sem personalidade e usa a falsa modéstia como escudo.

Sou cônscio de que, sendo como sou, é difícil cair verdadeiramente nas graças de uma mulher, mas contra possibilidades e probabilidades tem acontecido. Portanto não devo ser assim tão casca grossa, tampouco estar errado na minha visão do universo feminino. Então continuarei acreditando ter descoberto a trilha que leva à felicidade. Ao menos à fortuna a dois, pois a coletiva e pessoal eu já tenho, por ter muitas pessoas boas ao meu redor nas figuras da minha família e amigos, por estar respirando e pensando e ter a consciência de que o verdadeiro contentamento está dentro de nós, como um estado de espírito. É responsabilidade de cada um ser feliz e tal incumbência jamais deverá ser relegada a outros.


Nardélio F. Luz


domingo, 17 de janeiro de 2016

Sobre o Autor

O escritor e poeta Nardélio Fernandes Luz exerceu as profissões de funileiro e soldador industrial até 1998, quando, aos 31 anos, sofreu um acidente durante um mergulho, que o deixou tetraplégico. Desde então descobriu a vocação e o gosto pela escrita e a tem usado para manter a saúde psíquica e superar os limites impostos pelo corpo. Sua habilidade para escrever é fabulosa. Com alegria e um cativante amor pela vida expõe suas opiniões e sentimentos de forma singularmente coerente, o que o torna um dos melhores escritores que tive o prazer de conhecer. Não é, portanto, um tetraplégico que se tornou um escritor, mas um escritor que por uma fatalidade é tetraplégico.

Nardélio escreve contos, crônicas, poemas e textos que abordam, principalmente, as diversas facetas das pessoas com deficiência física. O autor acredita ser a falta de informações a principal causadora do preconceito e discriminação. Além de exímio escritor, é um grande desportista do Bocha Adaptada, exemplificando nos seus textos que o esporte é um dos mais eficazes e prazerosos meios de reintegração. Recentemente escreveu a autobiografia, intitulada Vida Após a Vida, em que registra sua luta e, sobretudo, sua capacidade de exercitar a resignação com relação ao imutável. Com grande coragem abre seu coração, narrando o duro processo de reabilitação, bem como suas emoções. Com esta atitude encoraja as pessoas que possuem limitações a refletirem sobre as diversas formas de se viver bem, apesar da deficiência.

Mostra-nos que há honra em viver sem lamentações e a coragem de enfrentar as dificuldades com dignidade, faz dele um exemplo de força, fé e persistência. É encantador e convence-nos de que o maior empecilho para a superação, é desistirmos de nós mesmos e, ainda, evidencia que somos donos de nossas vidas, cabendo a nós, escolhermos o caminho. Vive na simplicidade e acredita que é nela que se encontram as coisas essencialmente importantes e, sobretudo, o insondável segredo para a evolução do ser humano.

Sempre aprendo lições importantes com ele, como as afirmações abaixo:

Eu estou feliz com o meu dia, com a minha noite. Eu estou feliz pelos meus sentidos, pelos meus sentimentos. Por ter percebido que, para ser o que sou hoje, foi preciso esta cama, que me fez parar e me possibilitou dar atenção às pequenas e realmente importantes coisas da vida. Eu estou feliz por ter aceitado o aprendizado com serenidade. Pela ciência de ter vencido apenas uma batalha, a primeira de muitas que serão travadas no meu futuro paralítico. Eu estou feliz pelas armas mentais que possuo, pelo escudo psíquico e pela ausência do medo. Eu estou feliz por estar pensando... Por não precisar do corpo para me mover nas asas da imaginação... Pelas amizades que tenho. Eu SOU feliz por estar VIVO[i].

Destaco ainda um outro trecho do autor que me leva à reflexão: “Mas a gente acaba se acostumando e descobre que existe vida após a paralisia. Foi pensando nisto que dei o título ‘Vida Após a Vida’ ao livro autobiográfico que escrevi[ii]”. Nas lições descritas no livro expressa suas lutas e capacidade de superação, de amor, de mudança e de sonhos. O conteúdo é extremamente significativo e atraente, fazendo-nos viajar junto com o autor na sua narrativa. É imprescindível a leitura desta obra, pela riqueza de informações sobre a vida de um escritor tão nobre e talentoso quanto Nardélio Fernandes Luz.

Ana Floripes Berbert Gentilin.
Professora, especialista em Educação Especial



[i] Trecho extraído do livro Vida Após a Vida de autoria de Nardélio Fernandes Luz.
[ii] Esta citação está no texto autobiográfico “Eu, Por Mim Mesmo” escrito por Nardélio Fernandes Luz, no ano de 2005 e publicado no site http://www.recantodasletras.com.br/

Magnânima



Magnânima


Creia você que me ouve, nas palavras tais:
Há seres vivendo neste mundo esplendoroso,
Que embora habitem fracos invólucros carnais,
Possuem intentos verdadeiramente venturosos.

Geralmente esses são gigantes na humildade
E vivem pelo exemplo e para ingentes ações,
Sempre semeando o magno e a solidariedade,
Soprando a esperança e o amor nos corações.

São eles, na verdade, como generais de Deus,
Em auxílio aos pobres, infelizes e arruinados.
Que seja para estranhos ou mesmo entes seus,
Sempre estarão lá, prestativos e abnegados.

Creia-me, não falo de seres sobre-humanos
Muito menos de criaturas libertas de agonia;
Pois se essas não desfrutassem do mundano,
Tamanhos paradigmas de nada nos serviriam.

Quando me fora confiada tal recente missão,
Na inquietude destas fundamentais paragens,
Fui coligado a um dos seres que faço alusão,
Como já havia sido antes, noutras passagens.

É quase certo que nem todos podem perceber
Um propósito tão antigo quanto inexplicável,
Mesmo eu, somente há pouco pude entender,
Que o resgate de todas as dívidas é inevitável.

Embora creia na existência de coincidências,
Por abonarem ao livre arbítrio algum embaso,
Conheço quem defenda com grande eloquência
Que nada nesta ou em outras vidas é por acaso.

É certo que tento me esquivar de novos cotejos,
Com o pressuposto de extirpar as velhas dores,
Pois mesmo para os sentidos ainda há ensejos,
Conquanto até aqui persistam velhos temores.

No momento habito este invólucro corpóreo
Sob o amparo de criatura amorosa e augusta;
Meu coração agora é manso e não mais ignoro,
Minha amada mãe, que até no nome é JUSTA.

Houve tempos em que a divergência me afastou
E percorri léguas numa egoísta deserção insana,
Mas ao final foi o arrependimento que me restou,
Assim como o perdão daquela que mais me ama.

Foi tanto tempo desperdiçado nesta vida minha,
Em aventuras vis, longe do exercício da gratidão,
Mas só Deus sabe o quanto amo minha mãezinha;
Amor que vem da alma e preenche meu coração.

Nardélio F. Luz


Poema em homenagem a D. Justa, minha mãe guerreira.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Sozinho




Sozinho


Sexta-feira, seis da manhã,
Acordei cedo, estou sozinho e sem o que fazer.
Encontro-me à frente do computador,
Quieto, calado, buscando inspiração;
Ela não vem...

Um raio de sol adentra a janela aberta,
Criando reflexos na tela e cegando-me parcialmente.
O vento ruge lá fora, por entre as folhas do limoeiro,
Ouço-o, capto-o, sinto-o penetrando pela janela;
Que dia lindo os seres têm...

A saudade bate, fustiga o meu peito,
Traz lembranças antigas,
De tempos já idos e irrecuperáveis.
Remexe velhos sentimentos adormecidos,
Saudades que não sei de quê, ou de quem...

O sininho toca na varanda,
O cachorro late na rua distante.
Sinto os movimentos fora dessas paredes,
Farejo o esplendor da vida com alegria,
A vida, simples, que pulsa aqui e além...



quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Uma Manhã Qualquer

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É manhã. Uma manhã qualquer do mês de janeiro; mas a cronologia não importa. Uma manhã linda..., esplendorosa..., daquelas que levam os seres mais sensíveis a agradecerem imensamente por estarem vivos e poder desfrutá-la.

Acordei feliz! Talvez seja pelo sol maravilhoso que brilha lá fora, pintando o céu de um azul profundo, enfeitado aleatoriamente por pequenos e irregulares tufos brancos. Talvez seja pelas formiguinhas minúsculas andando na parede próxima. Talvez pela lagartixa correndo atrás do inseto. Talvez pelo latido do pequeno vira-lata no portão, acusando movimento na rua. Talvez seja pelo barulho da escova no tanque, denunciando o ânimo da minha mãe, na sua lida com a roupa. Talvez seja pelo vento que balança os galhos no quintal, avistados através da porta aberta à minha direita... Pela algazarra dos pardais... Pela sensação de liberdade que me transmite os pequenos pontos negros, voando em espirais, tendo o infinito azul como fundo. Talvez pelo delicioso cheiro de pipocas e café fresco, vindos da casa do vizinho. Talvez pelos beijos na boca que aconteceram no ultimo sábado.

A tela da tevê apagada reflete o retângulo luminoso da enorme porta aberta às minhas costas, e através dela vejo o limoeiro, com seus galhos esqueléticos e os vários tons de verde das folhas, viçosas, ainda úmidas pelo orvalho matinal. Vejo o pequeno beija-flor bebendo no vermelho vivo da rosa plástica, única desabrochada no galho artificial. Talvez seja por uma coisa ou outra, ou talvez pelo conjunto que dá consistência ao todo. O certo e o que realmente importa é que estou feliz.

Meus sentidos funcionam melhor que nunca: o aroma de café continua forte e delicioso; o gosto da pasta dental ainda impregna minha língua e refresca meu hálito; os sons do mundo à minha volta se mesclam numa sinfonia harmoniosa; apesar da barba por fazer, posso sentir a brisa acariciar meu rosto; e minha visão, ah, quantas belezas vislumbro!... Cada pequeno movimento à minha volta, mostrando o pulsar da vida, a eterna luta dos seres rumo à evolução. Num piscar de olhos, meu cérebro passeia do pequeno ao grande, da apressada formiguinha na parede ao esplendoroso mundo lá fora. O rio continua seguindo seu curso, o planeta continua girando e o tempo continua passando, arrastando consigo o bom e o mau, sem distingui-los. Tudo passa, tudo se vai, somente as lembranças permanecem imunes ao implacável senhor das horas.

Eu estou feliz, mas não foi sempre assim. Passei por um período de purificação para chegar onde estou. Eu estive doente, muito doente. Meu corpo foi paralisado de repente por um mergulho estúpido. Lembro-me de cada dia e cada noite insone, da terrível horizontalidade imóvel naquela cama de hospital. Lembro-me das dilacerantes dores nos ombros e no pescoço quebrado. Da macabra tração fixada no meu crânio, afastando as vértebras despedaçadas. Lembro-me da famigerada coceira na cabeça, zombando da minha impotente paralisia. Da alva sala de cirurgias e seus branquíssimos ocupantes fantasmas. Lembro do indizível sofrimento pós-cirúrgico. Da agonia da secreção nauseabunda proveniente dos pulmões infeccionados, da incapacidade de tossir ou de respirar sozinho. Da torturante sucção dos tubos, a extraírem a gosma purulenta do órgão doente. Da pavorosa sonda maculando minha uretra. Dos asquerosos antibióticos. Dos pesadelos macabros, nas poucas horas de turbulento sono induzido. Dos momentos de desespero. Da fadiga mental, causada pela abstinência de alimentos e sono. Dos tubos transparentes nas narinas, levando o oxigênio. Das agulhas eternas introduzidas nos pulsos imóveis e indolores. Do meu corpo cadavérico, morbidamente pálido e pele sobre os ossos, me conferindo uma aparência de múmia. E da apavorante febre, soberana, queimando tudo.

Sim, eu estive doente. Não obstante, não falo somente da doença do corpo, mas do catalisador que essa representou para a doença da alma. Das crises de desespero. Da descrença no futuro. Da incerteza da sobrevivência. Da serpente traiçoeira chamada depressão.

Sim, eu estive doente. Estive doente do corpo e da alma. Do corpo os médicos cuidaram. Minha alma ficou por conta do carinho da família e dos amigos. Das manifestações de apoio e solidariedade. Mas, principalmente, da certeza que me incutiram de que eu nunca estaria sozinho. E por me fazerem acreditar que eu faria falta. Isto fez a diferença entre o desistir ou prosseguir. Eu estive doente sim, mas como tudo passa, isso também passou, junto com o cicatrizante tempo. Isso foi há cinco anos.

Hoje eu sou um tetraplégico, mas não estou doente. Estou paralisado, não obstante, curado das doenças do corpo e da alma. Optei por viver e lutei para isso. Tive namorada. Fiz amor com ela: amor deficiente, amor tetraplégico, amor adaptado, amor que envolve mais os sentimentos que o próprio ato sexual, amor de entrega irrestrita, amor simplesmente. Eu estou feliz com o meu dia, com a minha noite. Eu estou feliz pelos meus sentidos, pelos meus sentimentos. Por ter percebido que para ser o que sou hoje, foi preciso esta cama, para me fazer parar e dar atenções às pequenas e mais importantes coisas da vida. Eu estou feliz por ter aceitado o aprendizado com serenidade. Pela ciência de ter vencido apenas uma batalha, a primeira de muitas que serão travadas no meu futuro paralítico. Eu estou feliz pelas armas mentais que possuo, pelo escudo psíquico e pela ausência do medo.  Eu estou feliz por estar pensando... Por não precisar do corpo para me mover nas asas da imaginação... Pelas amizades que tenho. Eu SOU feliz por estar VIVO. É manhã... Uma manhã qualquer... Por si só, especial, como tantas outras na minha vida.

Nardélio F. Luz

Frase 15/01/2016


quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Nebulosidade Interior

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Por uma benção de Deus, que segundo as mais fervorosas crenças criou e permite a constante evolução da natureza, todos os dias e as noites nascem e caem distintos. E isso não é apenas um milagre, mas acima de tudo um presente. Há aqueles dias em que mesmo claros, parecem cinzentos, que mesmo ensolarados, parecem tempestuosos; e quando olhamos o sol e ainda assim continuamos sentindo a escuridão é que percebemos: não é o dia, não são os elementos... A ausência de luz seja dia seja noite, em verdade está em nós mesmos, no nosso coração constringido, na nossa personalidade carcomida, no nosso interior nebuloso e na nossa alma obscura.

Não sabemos de fato a causa... Se é a consciência nos acusando das "cagadas" que já fizemos no passado, para as quais não há conserto; se remorso inconsciente por algo que o consciente fez questão de apagar; se pelo irresponsável que bebeu em excesso e fez sofrer nosso ente querido, e, descerebrado, ainda se julga certo por estar "vivendo" a própria vida; se pelo arrependimento e vergonha de nós mesmos já termos feito coisa parecida; se pela falta em alguns de uma coisa antiga e já quase caída no esquecimento chamada vergonha na cara, que acaba prejudicando outros; se de pena pelo estúpido que ameaçou saltar da torre porque a irmã batalhadora, que não tem culpa por ter um imbecil na família, lhe negou dinheiro; se pelo deprimido que é infeliz por nunca assumir e tentar corrigir os próprios erros; se pelo retardado que fala pelos cotovelos sem olhar para o próprio rabo; o pessimista que amanhece e anoitece proferindo e esparzindo a negatividade; se por ouvir incessantemente o egocêntrico que se sente fracassado pedindo a morte, enquanto o enfermo luta bravamente para manter a vida; se pela própria insensibilidade ao eliminado com cinco tiros, que você julga merecedor por se tratar de um traficante que ceifara vidas anteriormente; se devido ao corrupto preso que você sabe que não permanecerá, e todos os que merecem o cárcere e permanecem intocáveis; se pela inércia de quem pode resolver ou mesmo fazer a diferença; se pela agonia dos que tem vontade, mas são limitados; se devido aos terremotos que matam milhares e, você, já tão vacinado contra os noticiários — mórbidos prazeres da mídia — que quase não se sensibiliza e apenas dá graças por ter ocorrido longe; se pela decepção da descoberta da maior das máscaras, que de repente cai e mostra a verdadeira face; o doente que não aceita a doença e recusa o tratamento, escondendo-se da realidade; o doente que aceita a doença, mas não tem condições de se tratar; se por ouvir os gemidos sem nada poder fazer para ajudar, enquanto os que podem nada fazem; pelo testemunho do sofrimento e a oração para Deus conceder o alívio necessário, enquanto os entes que pouco frequentam imploram pela recuperação milagrosa; sentir culpa por sentir alívio enquanto outros choram, ao saber que apesar do pranto um tormento cessou; pelo lixo que emporcalha e sufoca o mundo, produzido indiscriminadamente cada vez mais; se pela incapacidade de reação do acomodado; a apatia da humanidade como gado sendo conduzido ao matadouro; talvez pelo sentimento de fracasso antes mesmo de se tentar; ou a perspectiva de um futuro sem perspectiva para os que ainda estão por vir...

Nesses dias a tristeza se faz soberana e tenta nos arrastar para as profundezas, de onde poucas chances temos de retornar. É então que se faz evidente a distinção entre os homens tanto quanto é entre os dias — excetuando que os dias, mesmo aqueles sem sol, irradiam beleza pela própria distinção. Nós humanos, por outro lado, somos seres egoístas e hipocondríacos, de forma que tanto decepcionamos quanto somos decepcionados, mas é sempre mais cômodo enxergar e acreditar no segundo fato. 

Alguns, encerrados em sua própria natureza obscura e fragilidade de caráter se deixam arrastar para infindáveis abismos de vícios e jamais retornam. Outros se perdem, mas são resgatados pelo amor dos próximos e a própria força de vontade. Há aqueles que permanecem acomodados, permitindo que a vida passe sem qualquer reconhecimento da dádiva que ela é. Os que praticam o mal. Os que praticam o bem. Os que tanto faz. E assim o leque se abre infinitamente... 

Há, contudo, o momento da constatação para todos. E a partir desse, o ser faz suas escolhas e, claro, ciente ou inconscientemente, começa a arcar com as consequências, sejam elas positivas ou negativas. "Por que se preocupa? haverá risos após a dor..., Haverá a luz do sol após a chuva..., Essas coisas sempre foram iguais..., Então, por que se preocupa agora?" Cito esse refrão desde a inesquecível década de 1980, quando Mark Knopfler teve a felicidade de escrevê-lo, e nunca se encaixou tão bem quanto no tema em questão. Ou seja, se para haver equilíbrio entre o caos e a ordem, todas as coisas do universo possuem sua contraparte — luz e trevas, bem e mal, peso e leveza, preto e branco, Deus e o diabo etc. —, por que se preocupar com as coisas ruins se paralelamente vem acontecendo outras boas, em medida equivalente? Não é mais inteligente desviarmos os olhos do próprio umbigo e das dores e prestarmos maior atenção às alegrias ao redor? Quantas cores! Quanto perfume! Quantos sabores! Quantas sensações! Quanta vida!!!

O acaso não se furta em dar sua contribuição ocasionalmente, mas somos nós que escolhemos entre aceitar seus desígnios ou escrevermos nosso destino. Precisamos abrir o leque..., observarmos as constantes transformações da natureza e tudo que ela nos oferece e/ou nos possibilita..., atentarmos para as coisas pequenas e realmente importantes. É fato que tudo nesta vida, seja bom ou ruim, um dia passa; por que, então, não termos paciência com as ruins e, não apenas reconhecer e enxergar, mas verdadeiramente valorizarmos as coisas boas? Afinal, ainda que venham outras no futuro, as atuais terão se tornado passado e jamais retornarão. E nós, o que fizemos com elas? Será que ao menos notamos sua existência? A mudança para melhor, em que precisamos exorcizar velhos fantasmas, abdicar de antigos maus hábitos e adquirirmos novos e promissores, não é um processo fácil e tampouco rápido, mas se é possível, por que não tentarmos? Afinal, toda concretização parte de um sonho e toda caminhada tem um ponto de partida. O caminho a seguir e até onde podemos chegar depende, principalmente, de nós mesmos.

Nardélio F. luz

Meu "Grito" no jornal Correio de Uberlândia



A opinião do leitor, que pode elogiar ou criticar a obra conforme seu ponto de vista e até gosto pessoal, é super importante. A primeira nos enaltece, mas a segunda ensina e nos impulsiona a melhorar sempre. Uma ou outra, ambas dependem desse autor ser lido, e é isso que me foi proporcionado ao ter o poema "Grito" publicado em "Escreve Aí", esta prestigiada coluna do jornal "Correio de Uberlândia OnLine" comandada por Ivone de Assis, excelente Escritora e competente Editora. Bem como tê-lo tão bem explanado por essa pessoa de tão alto nível cultural.

Foi realmente um belo presente de aniversário!

Obrigado por dar atenção a este humilde rabisco, Ivone!


FORTUNA CRÍTICA:

"O grito do poeta é seu apelo à vida, em que toca tão profundamente o inconsciente, que chega a ser confundido com o autor. Para Luiz Costa Lima (apud Donaldo Schüler, 1979, p. 47): 'a única análise literária válida é a que atinge as estruturas inconscientes'. Então, se  a palavra poética goza de infinita liberdade, estabelecendo relações múltiplas, prováveis e improváveis, poderíamos dizer, que a escrita é a estrutura consciente enquanto a poesia é a inconsciente, mas carecemos das duas  para que se estabeleça uma análise sugestiva. O “Grito” é um poema que toca a alma do leitor ao mesmo tempo que desnuda a alma do poeta."


NARDÉLIO LUZ

Nardélio Luz é cronista, para-atleta nacional (na modalidade Bocha adaptada), poeta e autor da obra 'Vida após a vida', uma autobiografia de 384 páginas, em que o autor narra seu antes e depois do acidente. Contudo, o que chama a atenção neste escritor é sua LUZ, não a do sobrenome, mas aquela que não o permite parar de produzir. Com significativas medalhas, ficou em 5º lugar no ranking nacional e teve uma pré-convocação para a Seleção Brasileira. Nas palavras dele: 'é perfeitamente possível ser feliz sobre uma cadeira de rodas…'".

Ivone de Assis.
Editora/Escritora



Grito

Este é mais um
Daqueles momentos
Execráveis e angustiantes,
Que culminam na dolorosa
Incerteza do saber…

Onde impera a confusão,
Ainda mais que antes;
Quando a alma fica frágil,
E quase nada há a fazer…

E em desespero, eu grito!

A psique deteriora
E logo fica estraçalhada,
Pois o caminho a seguir
Parece desaparecer…

Só enxergamos, lá trás,
As ruelas já trilhadas,
Insólitas e desoladas,
Não se sabe o porque…

E uma vez mais, eu grito!

Todo o certo de antes,
Permanece semiapagado,
E as poucas referências,
Impossíveis de se ver…

O concreto é abstrato,
O futuro é rabiscado,
E esta vil utopia é tudo
Que nos resta pra viver…

E, uma última vez…
Em vão… Eu grito!


Nardélio F. Luz

Uberlândia - MG
12/01/2016

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Um Tetra em Porto Seguro

Como sempre acontece em excursões, saímos duas horas e quinze minutos depois do previsto. Ou seja, saímos de Uberlândia às dezesseis horas e quinze minutos da quinta-feira-santa. Dizer que a viagem foi difícil é pouco: na verdade ela foi tortuosa. Mas, nada que eu já não estivesse esperando e previamente preparado. Embora o ônibus fosse relativamente novo, numa viagem tão longa – e muitos trechos da estrada parecendo as crateras da lua –, não poderia passar sem alguns incidentes: dois pneus furados e uma mangueira de ar estourada num espaço de poucas horas – já no calor escaldante da Bahia e em plena sexta-feira-santa, quando a maioria dos trabalhadores folgavam.

Conquanto tenhamos parado para jantar, lanches, almoço e idas ao banheiro, e as pessoas tenham saído para esticar as pernas, eu optei por ficar dentro do ônibus, pois a portinhola que separa a cabine era terrivelmente estreita e dificultava em muito minha transição, carregado por dois amigos.

De todos os lados eu só ouvia reclamações do quão longa era a viagem. Também tinha as minhas, mas as guardava somente para mim. Se tal viagem era exaustiva para as pessoas “normais”, imagina para um tetraplégico, que viajou imóvel quase todo o tempo. Os incômodos da imobilidade me faziam suar frio o tempo todo. Na madrugada pedi a um amigo para estender um colchonete no corredor e me deitar um pouco, mas aquela posição – com tantos buracos na estrada – também era péssima, incutindo dores nos ombros e outros, assim, logo que amanheceu, voltei à minha poltrona.

Numa poltrona de carro, por ser mais ou menos anatômica, meu corpo inerte encaixa bem e fica no lugar, mas na poltrona do ônibus eu escorregava pra frente a toda hora e um amigo – ou dois – tinha que me puxar para cima. Ou seja, meu constrangimento era mais pelo trabalho que estava dando aos meus amigos – que estavam ali para se divertirem – do que pela tortura que meu corpo estava sendo submetido.

Mas minha psique – bem preparada – aguentava firme. Meu corpo suava copiosamente, um suor frio e pegajoso, e calafrios percorriam minha espinha, eriçando os pelos dos braços. Os incômodos eram muitos, mas meu medo maior era de abrir escaras nas nádegas, pois essas famigeradas lacerações abrem da noite para o dia, mas levam anos para cicatrizarem – isso quando cicatrizam. Para quem não sabe, as escaras – também chamadas úlceras de decúbito –, são diferentes das outras feridas: elas se desenvolvem de dentro para fora e, quando se abrem, todo o tecido já está apodrecido, muitas vezes mostrando o próprio osso. No caso de escaras maiores, quase sempre é preciso enxerto de tecidos para a cicatrização.

Quase todos os adultos faziam uso constante de cerveja, na tentativa de amenizar o calor e as agruras, e eu não era diferente. Por fim, três horas após o último pneu furado, adentramos Porto Seguro. Cerca de vinte minutos depois, chegamos à pousada, pouco mais de vinte e sete horas após nossa partida em Uberlândia.

A pousada era bastante espaçosa e os quartos foram divididos levando em conta laços familiares e afinidades. Eu fiquei no quarto do meu amigo Délio e família. O cansaço era geral, mas com toda certeza o meu beirava a exaustão. Assim, meus amigos Délio e Willian me deram um banho frio e reconfortante – onde, após constatar não haver nenhum início de escara, tomei os cuidados necessários no tocante a evitá-las, pedindo ao Délio para fazer massagens nas nádegas e costas, com muito creme hidratante. Mais uma Skol no bar ao lado da pousada para esperar o jantar, esse, e finalmente a cama. Antes de dormir, ainda uma preocupação: minha cadeira de rodas havia estourado um pneu traseiro e furado um dianteiro – acontecera misteriosamente no bagageiro do ônibus, sem que ninguém a tocasse.

A pousada ficava localizada no bairro do Areião – um pouco distante do mar – e o ônibus saia de manhã com o pessoal para as praias e só voltava à tarde. Embora tivesse algumas borracharias abertas, os profissionais, numa enorme preguiça – famosa em se tratando dos baianos –, davam uma olhada como quem não quer nada e diziam que meu pneu não tinha conserto. Somente à tardinha um dos motoristas do ônibus encontrou uma borracharia que colocou um manchão, que permitiria aguentar até a segunda-feira. Perdi todo o sábado da aleluia – ou quase todo, pois aproveitei do meu jeito, no barzinho ao lado... (risos).

No domingo de páscoa, embora o pneu dianteiro da cadeira estivesse novamente vazio, encheram-no com o ar do ônibus – coisa que não durou muito – e acompanhei a todos para a praia Coroa Vermelha, onde fora rezada a primeira missa, quando Cabral chegou ao Brasil. Não podia acionar os motores da cadeira, por causa do pneu murcho – que só pode ser comprado na fábrica, no Rio Grande do Sul. Mas fiquei o tempo todo junto com a turma – à sombra, claro – e o dia foi regado à cerveja, petiscos da culinária baiana e banhos de mar. Que delícia é o mar! À tardinha, de volta a pousada, mais cervejas no bar, jantar e cama.

Na segunda-feira decidi ficar na pousada, a fim de resolver de vez o problema dos pneus. Seu Bené, o dono da casa – um simpático baiano de meia idade, que, junto com a também simpática esposa, mantém impecavelmente a higiene do lugar – levou o pneu dianteiro a uma loja de bicicletas e adaptou uma câmara de ar nova. Desta forma – acompanhado pelo meu amigo Hermes e esposa, que também haviam ficado na pousada –, eu mesmo levei a cadeira à loja e mandei substituir o pneu traseiro.

Novamente se destacou a famosa preguiça local: “Tem desse pneu aqui não”, respondeu no sotaque característico, um sujeito atlético de bermudas e Havaianas, que não despregava a bunda de um banquinho sujo de graxa. Já irritado com o mau-atendimento, eu retruquei um tanto áspero: “Sei que não tem, pois esse pneu é original e só vende na fábrica ou lojas especializadas da Freedom, mas você pode substituí-lo por um de bicicleta que tenha o mesmo aro”. “Pode ser..., vamos ver..., espere um pouco...”

Minha irritação era crescente, mas me calei e tratei de exercitar a paciência, afinal, o precisado era eu. Depois de terminar o desmonte de uma bicicleta infantil – pouco menos de meia-hora – o cara tirou a bunda do banquinho. Colocou uma cadeira de madeira ao lado da minha e ficou olhando para a minha cara. Quando me dei conta da sua intenção, não pude conter um largo sorriso. “Eu não saio da cadeira, moço... Você vai ter que levantá-la um pouquinho e colocar um calço”. “Ah... Ta bom...”, finalmente a ficha dele caiu. A essa altura, a oficina já estava cheia de gente, fazendo perguntas como se a cadeira motorizada fosse extraterrena. Hermes o ajudou a içar a cadeira e colocar o calço. O rapaz até que foi eficiente quando começou a trabalhar: após testar três pneus, me pareceu mais adequado o último – de bicicleta cargueira –, que embora o dobro do preço, era bem mais reforçado.

Terminado o trabalho, paramos numa pracinha para um lanche rápido e levamos cerca de quarenta minutos para fazermos o percurso de volta – pouco mais de seis quarteirões –, devido ao péssimo estado do calçamento das ruas. A cadeira pulava como um cabrito e, por várias vezes temi que ela se quebrasse, ou se desmanchasse. Foi realmente um teste de alta resistência. Aqui afirmo com todas as letras: quanto mais cidades eu conheço, mais amo minha Uberlândia, que segundo informações não-oficiais, em âmbito nacional só perde para a grande Curitiba em adaptações para cadeirantes.

Novamente esperei a chegada da turma no barzinho, ao lado da pousada, que embora “copo-sujo”, possuía um ótimo atendimento. Naquela noite houve churrasco e forró na pousada, em comemoração ao aniversário de uma das excursionistas, e eu me esbaldei.

De cadeira zerada, aproveitei o resto da semana nas belíssimas praias de Porto Seguro. Dentre todas, as que mais gostei foram as dos complexos de lazer “Barramares” e “Axé Moi” – pronuncia-se axé moá. A turma ainda fez excursões para a cidade histórica, Troncoso, passeios de escuna para mergulhos nos corais, e outros lugares que não me interessaram, devido à péssima geografia, que em nada alivia e, muitas vezes, torna impossível a locomoção de um cadeirante.

Embora eu – branco como cera – procurasse sempre as sombras, fizesse uso constante de protetor solar, bebesse muita água-de-coco, mineral e “outros líquidos”, fiquei bastante queimado. Minha exposição ao sol se dava mais quando eu me arriscava nas pedregosas ruas da cidade – nas quais levava pouco mais ou menos dez minutos para avançar um único quarteirão. Definitivamente – como a maioria das cidades históricas –, Porto Seguro não é lugar para cadeirantes! Nem mesmo à famosa “Passarela do Álcool” eu fui, devido às inúmeras dificuldades de locomoção. No Centro da cidade se pode encontrar algumas poucas rampas de acesso às calçadas, mas não se anda vinte metros sem se deparar com degraus e desníveis, a maioria ascendendo trinta e quarenta centímetros.

As dificuldades não se limitam apenas aos deficientes, mas também aos idosos, grávidas e crianças pequenas, num descaso geral. Pude notar que deficientes naquelas paragens – sobretudo cadeirantes – são tão raros que, nas ruas, a maioria das pessoas me olhava como se eu fosse verde com anteninhas na cabeça e minha cadeira tivesse saído de “Guerra nas Estrelas”. E ainda faziam comentários em voz alta, que me divertiam muito. Meu amigo Délio dizia que ali eu era um astro. E, como tal, eu distribuía sorrisos para todos que me encaravam (risos). Eu sempre me divirto muito com essas coisas.

O objetivo principal desta narrativa é mostrar aos deficientes – principalmente aos cadeirantes – que qualquer um, independente de deficiência, pode viajar e se divertir. Embora nossas dificuldades sejam infinitamente maiores que as das pessoas “normais”, são perfeitamente superáveis com um pouco de ajuda, e há realmente vida após a paralisia. Com tantos lugares bacanas por perto para se visitar, não é preciso se sacrificar em longas e cansativas viagens de ônibus. Eu o faço porque gosto de testar meu corpo, e desta vez o levei ao limite extremo, numa viagem totalmente desproporcional a um tetraplégico. E meu corpo aguentou firme. Sofreu um bocado, mas aguentou! Mais uma vez provei a mim mesmo que, se a mente quer, o corpo aguenta.

Não há porque as pessoas com dificuldades de locomoção ficar enclausuradas em casa, expostas ao estresse e à famigerada depressão. Temos mais é que nos mexermos, divertirmo-nos... Deus tira nossas pernas, mas nos dá rodinhas. Temos que viver, pois a vida é muito curta para ser desperdiçada choramingando e esperando milagres, e dela só levamos nossas próprias experiências. Eu só não me diverti mais porque para tudo que eu queria – passeios de bugues e ultraleves – faltou grana, mas o que fiz já está de muito bom tamanho.

Na quinta-feira, a maioria das pessoas já estava com saudades de casa. Eu não era diferente: ansiava por rever minha família; pela solidão calma e consentida do meu quarto; minha cama, que me permite sentar; meus livros e filmes; o computador, que dá acesso aos meus amigos mais distantes; e até do mais peralta dos bichos, meu cachorro “Zoreia”. Não creio voltar mais a Porto Seguro, pois a cidade definitivamente não oferece suporte nenhum a cadeirante, e o desdém das pessoas quanto a isso é notável. E não apenas por isso, mas também porque o Brasil possui tantos lugares lindos e interessantes, que se pode viajar a vida inteira sem precisar repetir um só lugar. 

A viagem de volta, embora uma hora a menos – viemos em pouco mais de 26 horas –, foi tão ou mais torturante que a ida, pois o cansaço era maior e já não tinha mais a euforia da farra. O Délio – que havia deixado o carro no pátio da empresa de ônibus – deixou-me em casa ao cair da noite de domingo. Eu estava exausto, suado, imundo e com os pés e pernas tão inchados quanto balões de parque de diversão. Mas também estava com a mente aliviada, sem estresse, e assim permanecerei por algum tempo, até que seja preciso sair para espairecer novamente. O saldo total da viagem foi, a meu ver, 80% positivo e 20% negativo. Valeu a pena... E como valeu a pena!

Nardélio F. Luz