terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Um Tetra em Porto Seguro

Como sempre acontece em excursões, saímos duas horas e quinze minutos depois do previsto. Ou seja, saímos de Uberlândia às dezesseis horas e quinze minutos da quinta-feira-santa. Dizer que a viagem foi difícil é pouco: na verdade ela foi tortuosa. Mas, nada que eu já não estivesse esperando e previamente preparado. Embora o ônibus fosse relativamente novo, numa viagem tão longa – e muitos trechos da estrada parecendo as crateras da lua –, não poderia passar sem alguns incidentes: dois pneus furados e uma mangueira de ar estourada num espaço de poucas horas – já no calor escaldante da Bahia e em plena sexta-feira-santa, quando a maioria dos trabalhadores folgavam.

Conquanto tenhamos parado para jantar, lanches, almoço e idas ao banheiro, e as pessoas tenham saído para esticar as pernas, eu optei por ficar dentro do ônibus, pois a portinhola que separa a cabine era terrivelmente estreita e dificultava em muito minha transição, carregado por dois amigos.

De todos os lados eu só ouvia reclamações do quão longa era a viagem. Também tinha as minhas, mas as guardava somente para mim. Se tal viagem era exaustiva para as pessoas “normais”, imagina para um tetraplégico, que viajou imóvel quase todo o tempo. Os incômodos da imobilidade me faziam suar frio o tempo todo. Na madrugada pedi a um amigo para estender um colchonete no corredor e me deitar um pouco, mas aquela posição – com tantos buracos na estrada – também era péssima, incutindo dores nos ombros e outros, assim, logo que amanheceu, voltei à minha poltrona.

Numa poltrona de carro, por ser mais ou menos anatômica, meu corpo inerte encaixa bem e fica no lugar, mas na poltrona do ônibus eu escorregava pra frente a toda hora e um amigo – ou dois – tinha que me puxar para cima. Ou seja, meu constrangimento era mais pelo trabalho que estava dando aos meus amigos – que estavam ali para se divertirem – do que pela tortura que meu corpo estava sendo submetido.

Mas minha psique – bem preparada – aguentava firme. Meu corpo suava copiosamente, um suor frio e pegajoso, e calafrios percorriam minha espinha, eriçando os pelos dos braços. Os incômodos eram muitos, mas meu medo maior era de abrir escaras nas nádegas, pois essas famigeradas lacerações abrem da noite para o dia, mas levam anos para cicatrizarem – isso quando cicatrizam. Para quem não sabe, as escaras – também chamadas úlceras de decúbito –, são diferentes das outras feridas: elas se desenvolvem de dentro para fora e, quando se abrem, todo o tecido já está apodrecido, muitas vezes mostrando o próprio osso. No caso de escaras maiores, quase sempre é preciso enxerto de tecidos para a cicatrização.

Quase todos os adultos faziam uso constante de cerveja, na tentativa de amenizar o calor e as agruras, e eu não era diferente. Por fim, três horas após o último pneu furado, adentramos Porto Seguro. Cerca de vinte minutos depois, chegamos à pousada, pouco mais de vinte e sete horas após nossa partida em Uberlândia.

A pousada era bastante espaçosa e os quartos foram divididos levando em conta laços familiares e afinidades. Eu fiquei no quarto do meu amigo Délio e família. O cansaço era geral, mas com toda certeza o meu beirava a exaustão. Assim, meus amigos Délio e Willian me deram um banho frio e reconfortante – onde, após constatar não haver nenhum início de escara, tomei os cuidados necessários no tocante a evitá-las, pedindo ao Délio para fazer massagens nas nádegas e costas, com muito creme hidratante. Mais uma Skol no bar ao lado da pousada para esperar o jantar, esse, e finalmente a cama. Antes de dormir, ainda uma preocupação: minha cadeira de rodas havia estourado um pneu traseiro e furado um dianteiro – acontecera misteriosamente no bagageiro do ônibus, sem que ninguém a tocasse.

A pousada ficava localizada no bairro do Areião – um pouco distante do mar – e o ônibus saia de manhã com o pessoal para as praias e só voltava à tarde. Embora tivesse algumas borracharias abertas, os profissionais, numa enorme preguiça – famosa em se tratando dos baianos –, davam uma olhada como quem não quer nada e diziam que meu pneu não tinha conserto. Somente à tardinha um dos motoristas do ônibus encontrou uma borracharia que colocou um manchão, que permitiria aguentar até a segunda-feira. Perdi todo o sábado da aleluia – ou quase todo, pois aproveitei do meu jeito, no barzinho ao lado... (risos).

No domingo de páscoa, embora o pneu dianteiro da cadeira estivesse novamente vazio, encheram-no com o ar do ônibus – coisa que não durou muito – e acompanhei a todos para a praia Coroa Vermelha, onde fora rezada a primeira missa, quando Cabral chegou ao Brasil. Não podia acionar os motores da cadeira, por causa do pneu murcho – que só pode ser comprado na fábrica, no Rio Grande do Sul. Mas fiquei o tempo todo junto com a turma – à sombra, claro – e o dia foi regado à cerveja, petiscos da culinária baiana e banhos de mar. Que delícia é o mar! À tardinha, de volta a pousada, mais cervejas no bar, jantar e cama.

Na segunda-feira decidi ficar na pousada, a fim de resolver de vez o problema dos pneus. Seu Bené, o dono da casa – um simpático baiano de meia idade, que, junto com a também simpática esposa, mantém impecavelmente a higiene do lugar – levou o pneu dianteiro a uma loja de bicicletas e adaptou uma câmara de ar nova. Desta forma – acompanhado pelo meu amigo Hermes e esposa, que também haviam ficado na pousada –, eu mesmo levei a cadeira à loja e mandei substituir o pneu traseiro.

Novamente se destacou a famosa preguiça local: “Tem desse pneu aqui não”, respondeu no sotaque característico, um sujeito atlético de bermudas e Havaianas, que não despregava a bunda de um banquinho sujo de graxa. Já irritado com o mau-atendimento, eu retruquei um tanto áspero: “Sei que não tem, pois esse pneu é original e só vende na fábrica ou lojas especializadas da Freedom, mas você pode substituí-lo por um de bicicleta que tenha o mesmo aro”. “Pode ser..., vamos ver..., espere um pouco...”

Minha irritação era crescente, mas me calei e tratei de exercitar a paciência, afinal, o precisado era eu. Depois de terminar o desmonte de uma bicicleta infantil – pouco menos de meia-hora – o cara tirou a bunda do banquinho. Colocou uma cadeira de madeira ao lado da minha e ficou olhando para a minha cara. Quando me dei conta da sua intenção, não pude conter um largo sorriso. “Eu não saio da cadeira, moço... Você vai ter que levantá-la um pouquinho e colocar um calço”. “Ah... Ta bom...”, finalmente a ficha dele caiu. A essa altura, a oficina já estava cheia de gente, fazendo perguntas como se a cadeira motorizada fosse extraterrena. Hermes o ajudou a içar a cadeira e colocar o calço. O rapaz até que foi eficiente quando começou a trabalhar: após testar três pneus, me pareceu mais adequado o último – de bicicleta cargueira –, que embora o dobro do preço, era bem mais reforçado.

Terminado o trabalho, paramos numa pracinha para um lanche rápido e levamos cerca de quarenta minutos para fazermos o percurso de volta – pouco mais de seis quarteirões –, devido ao péssimo estado do calçamento das ruas. A cadeira pulava como um cabrito e, por várias vezes temi que ela se quebrasse, ou se desmanchasse. Foi realmente um teste de alta resistência. Aqui afirmo com todas as letras: quanto mais cidades eu conheço, mais amo minha Uberlândia, que segundo informações não-oficiais, em âmbito nacional só perde para a grande Curitiba em adaptações para cadeirantes.

Novamente esperei a chegada da turma no barzinho, ao lado da pousada, que embora “copo-sujo”, possuía um ótimo atendimento. Naquela noite houve churrasco e forró na pousada, em comemoração ao aniversário de uma das excursionistas, e eu me esbaldei.

De cadeira zerada, aproveitei o resto da semana nas belíssimas praias de Porto Seguro. Dentre todas, as que mais gostei foram as dos complexos de lazer “Barramares” e “Axé Moi” – pronuncia-se axé moá. A turma ainda fez excursões para a cidade histórica, Troncoso, passeios de escuna para mergulhos nos corais, e outros lugares que não me interessaram, devido à péssima geografia, que em nada alivia e, muitas vezes, torna impossível a locomoção de um cadeirante.

Embora eu – branco como cera – procurasse sempre as sombras, fizesse uso constante de protetor solar, bebesse muita água-de-coco, mineral e “outros líquidos”, fiquei bastante queimado. Minha exposição ao sol se dava mais quando eu me arriscava nas pedregosas ruas da cidade – nas quais levava pouco mais ou menos dez minutos para avançar um único quarteirão. Definitivamente – como a maioria das cidades históricas –, Porto Seguro não é lugar para cadeirantes! Nem mesmo à famosa “Passarela do Álcool” eu fui, devido às inúmeras dificuldades de locomoção. No Centro da cidade se pode encontrar algumas poucas rampas de acesso às calçadas, mas não se anda vinte metros sem se deparar com degraus e desníveis, a maioria ascendendo trinta e quarenta centímetros.

As dificuldades não se limitam apenas aos deficientes, mas também aos idosos, grávidas e crianças pequenas, num descaso geral. Pude notar que deficientes naquelas paragens – sobretudo cadeirantes – são tão raros que, nas ruas, a maioria das pessoas me olhava como se eu fosse verde com anteninhas na cabeça e minha cadeira tivesse saído de “Guerra nas Estrelas”. E ainda faziam comentários em voz alta, que me divertiam muito. Meu amigo Délio dizia que ali eu era um astro. E, como tal, eu distribuía sorrisos para todos que me encaravam (risos). Eu sempre me divirto muito com essas coisas.

O objetivo principal desta narrativa é mostrar aos deficientes – principalmente aos cadeirantes – que qualquer um, independente de deficiência, pode viajar e se divertir. Embora nossas dificuldades sejam infinitamente maiores que as das pessoas “normais”, são perfeitamente superáveis com um pouco de ajuda, e há realmente vida após a paralisia. Com tantos lugares bacanas por perto para se visitar, não é preciso se sacrificar em longas e cansativas viagens de ônibus. Eu o faço porque gosto de testar meu corpo, e desta vez o levei ao limite extremo, numa viagem totalmente desproporcional a um tetraplégico. E meu corpo aguentou firme. Sofreu um bocado, mas aguentou! Mais uma vez provei a mim mesmo que, se a mente quer, o corpo aguenta.

Não há porque as pessoas com dificuldades de locomoção ficar enclausuradas em casa, expostas ao estresse e à famigerada depressão. Temos mais é que nos mexermos, divertirmo-nos... Deus tira nossas pernas, mas nos dá rodinhas. Temos que viver, pois a vida é muito curta para ser desperdiçada choramingando e esperando milagres, e dela só levamos nossas próprias experiências. Eu só não me diverti mais porque para tudo que eu queria – passeios de bugues e ultraleves – faltou grana, mas o que fiz já está de muito bom tamanho.

Na quinta-feira, a maioria das pessoas já estava com saudades de casa. Eu não era diferente: ansiava por rever minha família; pela solidão calma e consentida do meu quarto; minha cama, que me permite sentar; meus livros e filmes; o computador, que dá acesso aos meus amigos mais distantes; e até do mais peralta dos bichos, meu cachorro “Zoreia”. Não creio voltar mais a Porto Seguro, pois a cidade definitivamente não oferece suporte nenhum a cadeirante, e o desdém das pessoas quanto a isso é notável. E não apenas por isso, mas também porque o Brasil possui tantos lugares lindos e interessantes, que se pode viajar a vida inteira sem precisar repetir um só lugar. 

A viagem de volta, embora uma hora a menos – viemos em pouco mais de 26 horas –, foi tão ou mais torturante que a ida, pois o cansaço era maior e já não tinha mais a euforia da farra. O Délio – que havia deixado o carro no pátio da empresa de ônibus – deixou-me em casa ao cair da noite de domingo. Eu estava exausto, suado, imundo e com os pés e pernas tão inchados quanto balões de parque de diversão. Mas também estava com a mente aliviada, sem estresse, e assim permanecerei por algum tempo, até que seja preciso sair para espairecer novamente. O saldo total da viagem foi, a meu ver, 80% positivo e 20% negativo. Valeu a pena... E como valeu a pena!

Nardélio F. Luz

2 comentários:

  1. Eu hein, eis um tetra,bem revolucionário...


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  2. Eu não sou revolucionário, Izileide, só amo a vida (e, sobretudo, vive-la intensamente) como realmente tem que ser. Nada mais, nada menos.

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