segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

O Quadro

Nunca me canso de olhar para o deslumbrante presente pendurado na parede a minha frente, no lugar que fora especialmente reservado a ele. Lindo! Excepcionalmente cativante e tão simplesmente maravilhoso que seu vislumbre deleita meus olhos e proporciona um colorido especial ao quarto, preenchendo-o com a sua essência. Ontem foi domingo... Um belo domingo. Acordei cedo e, como não ouvi barulho, imaginei que minha mãe ainda estava na cama e não quis perturbá-la.

Fiquei “namorando” a paisagem e me imaginando andando descalço naquelas estradinhas de terra batida. O bom da imaginação é que ela não possui limites, assim, podemos andar e correr à vontade, por todos os lugares que quisermos. Imaginei-me nadando, pescando e refestelando-me nas águas frescas do lago. Vi-me sentado na grama, com as costas escoradas no tronco da árvore maior e uma haste de capim entre os dentes. O olhar perdido nas montanhas além do grande lago. A brisa acariciando meu corpo. Senti o cheiro da relva, viçosa por conta das últimas chuvas.

E sabe o que eu estava fazendo ali, sentado na grama à sombra da árvore? Eu a esperava. Sim, a esperava... E não demorou muito, você apareceu ao longe. A coloração verde-limão do seu vestido permitiu que eu a visse assim que despontou na curva da estrada, sob a sombra das árvores que circundam o grande lago. Você vinha na minha direção, vinha me encontrar. Estava linda, com seu vestido longo, de tecidos finos e leves, esvoaçando na brisa da manhã, quase tocando as leves sandálias de palha. Você segurava com a mão direita um longo e delicado chapéu de praia, que a brisa não deixava ficar na cabeça. Seus sedosos cabelos castanhos brilhavam ao sol, já bem quente àquela hora. Mas ainda mais destacado que seu vestido, estava seu sorriso, tão luminoso que quase fez o astro-rei se esconder de inveja. Dentro da bolsa, também de palha, entre outros tinha um livro de poesias, do qual você tinha falado há algum tempo.

Levantei-me da grama e corri ao seu encontro, alcançando-a antes que adentrasse a pequena entrada de terra batida, circundada por flores amarelas, brancas e vermelhas, que dava acesso à sala simples e aconchegante. A sala da casinha de paredes brancas e telhas vermelhas, concebida pela sua imaginação de artista e mãos de fada, munidas de pinceis mágicos e tintas encantadas.

A saudade era grande e ficamos fortemente abraçados por um longo período de tempo. Elogiei a estradinha de terra, as árvores e as folhas caídas no chão, a casinha, o lago, as montanhas, o céu azul e até os pequenos pontos negros que voavam ao longe, além de onde os olhos podiam ver, numa invejável liberdade irrestrita. Sim, elogiei e agradeci a você, por possuir tamanho bom-gosto e tanta sensibilidade; por ter criado tudo aquilo especialmente para mim. Agradeci-a por ser minha amiga. Agradeci-a por existir e fazer parte tão integrante da minha vida.

A convidei para entrar e você elogiou a exuberância e o perfume das flores recém-plantadas ao longo do caminho. O mobiliário da casinha era muito simples. Na sala, apenas duas rústicas e confortáveis cadeiras de leitura, artisticamente confeccionadas em palha e cipó, e uma pequena estante de madeira escura, carcomida pelo tempo, repleta de livros dos mais variados gêneros. Minha cadeira favorita era a que ficava à frente da janela noroeste, de onde se podia ver a estrada oeste e parte do imenso lago; a outra ficava junto à janela sudoeste, a fim de permitir ao usuário ver quem chegava pela estrada sul. E a estante de livros ficava junto à parede central.

Os dois quartos da casinha eram do mesmo tamanho e igualmente decorados com camas singelas, farfalhantes colchões de palha e lençóis de algodão. Também havia mesinhas de cabeceira, sobre as quais repousavam os candelabros, ainda armários velhos e gastos e quadros de paisagens em três tamanhos diferentes, pendurados nas paredes brancas, todos assinados por você. Também meu quarto preferido era aquele cuja janela dava vista para o lago, contudo o de hóspedes não era menos aconchegante.

Adentrando mais o chão de terra batida, bem varrido por perfumados ramos de alecrim selvagem, chegamos à cozinha. Um fogão a lenha, cujas cinzas ainda estavam mornas, ficava embaixo da janela nordeste. E sobre ele, numa espécie de varal de bambu, vários peixes recém-pescados estavam pendurados para defumar. Sobre as tábuas de uma prateleira escurecida pela fumaça, tão antiga quanto o resto do mobiliário, via-se várias panelas e outros utensílios de cozinha: a maioria de ferro, argila, ou material esmaltado.

Fred, o cachorrinho mais peralta do mundo, cochilava sob do longo banco de madeira que ficava ao longo da parede que dividia meu quarto da cozinha. Ao nos ouvir entrar, o velhaco levantou a cabeça preguiçosamente. O olhar sonolento levou alguns segundos para lhe identificar, então abanou a cabeça de longas orelhas para espantar a preguiça e correu na sua direção, ficando de pé nas patas traseiras e sujando seu vestido com as dianteiras. Após alguns afagos nas orelhas, ele finalmente quietou, mas a cauda continuou abanando em leque, numa genuína demonstração de felicidade.

Com facilidade fiz as chamas crepitarem novamente no fogão e coloquei uma chaleira preta com água para o café, que eu mesmo havia limpado no pilão, torrado e moído. Da soleira da porta, um degrau acima do terreiro varrido, você elogiou a exuberância das orquídeas que circundavam os troncos das árvores, ao longo do caminho que seguia para o leste, levando ao lago. Nessa época as orquídeas ainda não estavam floridas, mas isso não diminuía em nada sua exuberância e beleza.

Enquanto lavei o coador, bule e xícaras na abundante bica d’água do terreiro, o café finalmente ficou pronto. O aroma da bebida fresca acariciou nossas narinas, aguçando o paladar. Em seguida tirei uma travessa de pães-de-queijo fumegantes do forno do fogão a lenha e coloquei sobre a desforrada mesa da cozinha, que também estava velha e carcomida, mas impecavelmente limpa. O portentoso faro de Fred fez com que ele rodopiasse e ganisse, na tentativa de agradar, em troca de uma daquelas guloseimas.

Após o lanche, voltamos à sala e nos sentamos nas confortáveis cadeiras de leitura, que eram as mais novas aquisições do mobiliário. Você então me mostrou e falou do livro que trouxera e eu lhe mostrei e falei de alguns recém adquiridos. Conversamos horas a fio sobre livros, minha vida simples naquele isolamento planejado, sua arte, nossas escritas, seu trabalho com as crianças, suas lindas filhas, que iam bem na escola, e sobre seu amado marido. Dele falamos das sessões de massagens, da bela voz e violão, das coleções de pimentas e pingas de engenho. Enfim, conversamos sobre nossas famílias, que graças a Deus estavam bem, nossos amigos, que continuavam cada vez mais amigos, sobre tudo e sobre todos. Inclusive a felicitei pela vitória do seu time sobre o meu, no jogo da tarde anterior, que eu ouvira no radinho a pilha.

Então atravessamos o interior da casinha novamente e saímos para o terreiro da cozinha, seguidos de perto por Fred, que abanava a cauda alegremente e corria atrás das borboletas. Seguimos pela alameda ladeada de árvores floridas e orquídeas das mais variadas espécies, observando os passarinhos, sentindo o frescor das sombras e da brisa nos nossos rostos, até chegarmos ao lago. Coloquei nova isca numa vara de pesca que havia deixado de espera na noite anterior. Mostrei um tronco no qual estava iniciando os trabalhos para transformá-lo numa canoa, que me levaria ao meio do lago e aos peixes maiores. Caminhamos descalços no cascalho ao longo da margem, sentindo a água límpida e fresca tocar nossos pés em pequenas ondas.

O tempo passou rapidamente, como invariavelmente acontece quando estamos em companhia agradável. E também o sol seguiu sua incansável trajetória rumo oeste. À tardinha, quando o calor se tornara ameno, voltamos à casinha e a um novo café, acompanhado por broas de milho. O domingo fora maravilhoso, mas estava ficando tarde e infelizmente você precisava ir embora.

Saímos da casa pela porta da sala. Os canteiros de flores estavam viçosos, por causa da diminuição do calor. Já na estrada, olhei para trás, a fim de verificar se todas as portas e janelas estavam abertas; eu gostava assim, para arejar a casa. No mais, ali não havia nenhum perigo. Ali era meu refúgio, meu paraíso, longe dos perigos e da agitação da cidade. Caminhamos lado a lado pela estrada, no sentido noroeste, calmamente, despreocupadamente, falando sobre o belo dia que passamos juntos, os assuntos que botamos em dia e o fato de termos aplacado as saudades. Não obstante, sabíamos que assim que você saísse, essas voltariam, pois somos almas-irmãs e nossas afinidades não têm limites; mas também sabíamos que dali a uma semana iríamos nos ver de novo e na próxima e na próxima e na próxima.

Caminhei contigo até a curva da estrada, onde deixara o carro à sombra de um frondoso ipê amarelo, cujas flores caídas enfeitavam o teto e capô, tais quais colares havaianos. Abri a porteira para você passar. Após um abraço tão demorado quanto o da chegada e mais um sorriso luminoso, você entrou no veículo e deu a partida. Não precisou usar a marcha ré, apenas fez uma pequena curva sobre a grama e adentrou a estrada novamente. Você ainda pôs a cabeça para fora da janela e disse, acima do barulho leve do motor, que no próximo domingo seu marido e as filhas também viriam. Fiz sinal de entendimento com a cabeça, enquanto subia na porteira. E você acelerou.

Permaneci empoleirado no alto da cancela, com nova haste de capim na boca, vendo o carro desaparecer na próxima curva da estrada ao longo do lago. Sentia um aperto no peito ao vê-la partir, mas também conforto, por saber que dali a sete dias a veria novamente com o extrovertido barbudo e as baixinhas, que se divertiriam com Fred.

Depois que baixou o último grão de poeira da nuvem que o carro levantara, desci da porteira, conferi se a mesma estava bem fechada e rumei de volta ao meu paraíso na Terra. O sol já se escondia detrás do abaulado horizonte, deixando um clarão alaranjado refletido nas nuvens, em contraste com o céu azul. Eu ficaria esperando ansiosamente pelo próximo domingo.


Nardélio F. Luz

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