terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Eu, Por Mim Mesmo

Algumas pessoas — principalmente as recém-conhecidas na Internet — invariavelmente perguntam quem eu sou e o que faço nesta vida.

Meu nome é Nardélio Fernandes Luz, mas a maioria dos amigos me chama de “Narfe” — abreviatura dos meus dois primeiros nomes —, pseudônimo que usava para assinar os desenhos que fazia na adolescência. O que faço é quase nada.

Eu era um cara extremamente ativo. Adorava viajar e isto era bastante facilitado pela minha profissão, uma vez que peguei a “febre” das duplagens de caminhonetes e — sendo um funileiro especializado em adaptações — era bastante solicitado. Cada vez mais se abriam firmas de duplagens pelo interior do Brasil e integrei o quadro de funileiros de várias delas. Nunca consegui ficar muito tempo num lugar, sempre gostei de conhecer paragens e pessoas diferentes, o que me levou a trabalhar em várias cidades do país.

Em julho de 1998, aos 31 anos, mergulhei de forma errada em um rio e bati com a cabeça, fraturando a sexta vértebra cervical, o que causou uma lesão medular irreversível. Foram nove cirurgias no pescoço para extrair os fragmentos da vértebra que explodira com o impacto e substituí-la por ossos transplantados da crista ilíaca — osso localizado próximo à virilha — e implantes metálicos. Um período de quase dois meses de completa imobilidade no hospital, onde fui acometido de várias infecções hospitalares — inclusive três pneumonias — que quase me levaram desta pra melhor.

Contrariando algumas opiniões pessimistas, eu sobrevivi. E quando tive alta do hospital procurei reunir a maior quantidade possível de material sobre meu problema e estudá-lo a fundo. O objetivo era adquirir o máximo possível de conhecimento sobre o assunto para não alimentar falsas esperanças, maiormente no tocante a voltar a andar.

Como sempre viajei muito, a maioria dos meus amigos mora fora de Uberlândia e, com minha tetraplegia, aqueles que não podiam visitar, ligavam ou escreviam, de forma que eu recebia dezenas de cartas por mês. Sim, sou do tempo romântico das cartas. Todos na minha casa são inimigos declarados de escrita e leitura, o que me obrigou a descobrir um meio alternativo de responder tantas missivas.

Aos poucos fui recuperando parte da musculatura dos ombros e dos braços, que me permitiam alguns movimentos, ainda que bastante restritos. Inclusive são esses que possuo até hoje. Como meus dedos, mãos, e a maior parte dos músculos dos braços são paralisados, não tenho coordenação motora e, portanto, não consigo escrever a punho.

Sendo assim, comprei uma máquina de escrever eletrônica, pedi ao meu irmão que me fizesse uma mesinha — tipo de café da manhã —, levantasse a cabeceira da cama modelo hospitalar e prendesse tubos de caneta com esparadrapo nas palmas das minhas mãos. Como meus bíceps funcionam, os usei para erguer os braços e, ao soltá-los, a força da gravidade fez o resto.

Inicialmente os tubos batiam de forma desajeitada nas teclas, mas as acionavam, e aos poucos fui aprendendo a controlar os poucos movimentos que me restaram. Como minha lesão é C5 no lado esquerdo e C6 no direito, obviamente tenho menos controle no esquerdo e uso mais o braço direito — outra providência da minha boa estrela, já que sou destro.

Desta maneira comecei a escrever. Iniciei “catando milho”, depois fui superando as dores lancinantes dos ombros e aperfeiçoando cada vez mais aquela técnica, que era deveras deficiente, mas bastante eficaz. Foi um processo demorado, que exigiu superação da extrema sudorese fria devido aos incômodos, muito esforço e, principalmente muita paciência. Mas enfim, a persistência levou-me vencer aquela batalha e aquilo foi uma grande vitória.

Ano e meio depois fiz um tratamento intensivo de dois meses no Sarah Kubitschek — hospital especializado em reabilitação —, em Belo Horizonte, onde aprendi um pouco mais sobre minha deficiência e as complicações internas causadas por ela.

Geralmente quando se vê um deficiente — principalmente tetraplégico — na rua, imagina-se que seu único problema seja a imobilidade, mas essa ideia é completamente equivocada.

As complicações internas são muito piores que a falta de movimentos: a lesão do diafragma não permite que respiremos normalmente, causando muita falta de ar; não temos forças para tossir, espirrar ou gritar; a bexiga e os intestinos não funcionam normalmente e os rins ficam comprometidos; o coração tem que trabalhar dobrado para bombear o sangue nas áreas do corpo onde não mais há músculos ativos para ajudá-lo; a circulação fica seriamente comprometida; temos quedas de pressão arterial bruscas e constantes; somos tomados por sudorese gelada a cada incômodo que não sentimos; e ainda temos que tomar extremos cuidados para evitar infecções de urina e as famigeradas úlceras de decúbito — popularmente chamadas de escaras.

Uma prova real de tais complicações é que em 2005 tive que fazer três cirurgias de emergência — úlceras perfuradas no duodeno e intestinos — que, novamente, quase me fizeram atravessar a barreira para o além. Contudo, a força positiva emanada pelos meus amigos e familiares em forma de orações e o fato de ser mais agarrado à esta vida do que gato de ré permitiram que eu sobrevivesse e, embora hoje tenha que usar uma bolsa plástica no abdômen — estou no lucro, pois durante vários anos usei duas —, sou feliz como poucos.

Não vou usar falsa modéstia e dizer que a vida de um tetraplégico é fácil, sobretudo devido à extrema dependência em tudo: banhos, virar na cama, alimentação, fazer toques no reto para funcionar o intestino — no meu caso o toque não é mais necessário, já que uso colostomia —, passar da cama para a cadeira de rodas e vice-versa, ser levado aos lugares que precisa, enfim..., quase tudo mesmo.

E o pior é que nem sempre as pessoas de quem dependemos o fazem de boa vontade — o que é compreensível, uma vez que há sempre variações de humor, e nenhum ser nasceu para viver duas vidas. É inegável, porém, que tendo razão ou não, este fato deprime e dói bastante, a ponto de às vezes causar oscilações na psique. Mas a gente acaba se acostumando e descobre que existe vida após a paralisia. Foi baseado nisto que dei o título “Vida Após a Vida” ao meu livro autobiográfico de 384 páginas.

Graças ao treinamento e adaptadores palmares adquiridos no Sarah — basicamente versões aperfeiçoadas dos tubinhos presos com esparadrapo que inicialmente usei para escrever —, hoje consigo me alimentar, escovar os dentes e digitar melhor, além de outras pequenas coisas, como segurar pão, copos e outros objetos leves.

Depois veio o computador — presente das minhas adoráveis primas de Belo Horizonte —, no qual aos poucos fui me aperfeiçoando e desde então tem funcionado como uma espécie de psicólogo e relações públicas, me proporcionando ocupação, ajudando a fazer amizades, reencontrar pessoas queridas há muito sumidas, velhos amigos, antigas namoradas, divulgar meus textos, combater a depressão e estabelecer uma comunicação mais abrangente com o mundo.

Hoje, já bastante adaptado, passo a maior parte do tempo lendo, vendo bons filmes e escrevendo. Entre contos de suspense, poemas e crônicas, escrevo textos sobre a vida e a luta dos deficientes, no intuito de esclarecer e conscientizar as pessoas — sobretudo os próprios deficientes — de que, acima de tudo, a vida continua e é perfeitamente possível ser feliz sobre uma cadeira de rodas ou outros.

Outra parte do meu tempo eu passava treinando Bocha Paralímpica, um esporte adaptado para deficientes com comprometimentos severos, que me permitia viajar e participar de competições por todo o país. Nestas competições já obtive várias medalhas em campeonatos nacionais e regionais, o 5º lugar no ranking nacional, uma pré-convocação para a Seleção Brasileira e um Campeonato Brasileiro em equipe. Porém, após 13 anos competindo, me cansei das viagens e competições e me aposentei do esporte.

Hoje, para não enferrujar, faço musculação adaptada na academia da APARU – Associação dos Paraplégicos de Uberlândia, instituição da qual sou associado e voluntário desde a lesão medular, em 1998, e considero minha segunda casa.

É necessário frisar que não importa o que faça, o imprescindível na vida de qualquer pessoa — maiormente de uma pessoa com deficiência — é praticar atividades que lhe agrade e, sobretudo manter a mente ocupada e livre de fantasmas, pois como diz um velho dito popular: “cabeça vazia é oficina do diabo”.

O apoio incondicional da minha família e alguns amigos foi importantíssimo em todo meu processo de aceitação e reabilitação. Como é comum nestes casos, muito dos “amigos” foram se afastando aos poucos, até desaparecerem por completo e dos antigos hoje me restam poucos.

Não obstante, os verdadeiros continuam ao meu lado — e quando digo “ao meu lado”, incluo aqueles que mesmo separados por centenas de quilômetros se fazem presentes, de uma forma ou de outra. E o que inicialmente parecia maldição, tornou-se, na verdade, uma bênção.

Também continuo adquirindo novas e importantíssimas amizades, principalmente através da Internet. No mais, aprendi que quantidade é ilusão e qualidade é o que realmente importa. E boas qualidades são coisas que meus amigos e minha família possuem com sobra, prova maior disso é que conseguem me aturar.


Nardélio F. Luz

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