quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Uma Manhã Qualquer

https://pixabay.com/
É manhã. Uma manhã qualquer do mês de janeiro; mas a cronologia não importa. Uma manhã linda..., esplendorosa..., daquelas que levam os seres mais sensíveis a agradecerem imensamente por estarem vivos e poder desfrutá-la.

Acordei feliz! Talvez seja pelo sol maravilhoso que brilha lá fora, pintando o céu de um azul profundo, enfeitado aleatoriamente por pequenos e irregulares tufos brancos. Talvez seja pelas formiguinhas minúsculas andando na parede próxima. Talvez pela lagartixa correndo atrás do inseto. Talvez pelo latido do pequeno vira-lata no portão, acusando movimento na rua. Talvez seja pelo barulho da escova no tanque, denunciando o ânimo da minha mãe, na sua lida com a roupa. Talvez seja pelo vento que balança os galhos no quintal, avistados através da porta aberta à minha direita... Pela algazarra dos pardais... Pela sensação de liberdade que me transmite os pequenos pontos negros, voando em espirais, tendo o infinito azul como fundo. Talvez pelo delicioso cheiro de pipocas e café fresco, vindos da casa do vizinho. Talvez pelos beijos na boca que aconteceram no ultimo sábado.

A tela da tevê apagada reflete o retângulo luminoso da enorme porta aberta às minhas costas, e através dela vejo o limoeiro, com seus galhos esqueléticos e os vários tons de verde das folhas, viçosas, ainda úmidas pelo orvalho matinal. Vejo o pequeno beija-flor bebendo no vermelho vivo da rosa plástica, única desabrochada no galho artificial. Talvez seja por uma coisa ou outra, ou talvez pelo conjunto que dá consistência ao todo. O certo e o que realmente importa é que estou feliz.

Meus sentidos funcionam melhor que nunca: o aroma de café continua forte e delicioso; o gosto da pasta dental ainda impregna minha língua e refresca meu hálito; os sons do mundo à minha volta se mesclam numa sinfonia harmoniosa; apesar da barba por fazer, posso sentir a brisa acariciar meu rosto; e minha visão, ah, quantas belezas vislumbro!... Cada pequeno movimento à minha volta, mostrando o pulsar da vida, a eterna luta dos seres rumo à evolução. Num piscar de olhos, meu cérebro passeia do pequeno ao grande, da apressada formiguinha na parede ao esplendoroso mundo lá fora. O rio continua seguindo seu curso, o planeta continua girando e o tempo continua passando, arrastando consigo o bom e o mau, sem distingui-los. Tudo passa, tudo se vai, somente as lembranças permanecem imunes ao implacável senhor das horas.

Eu estou feliz, mas não foi sempre assim. Passei por um período de purificação para chegar onde estou. Eu estive doente, muito doente. Meu corpo foi paralisado de repente por um mergulho estúpido. Lembro-me de cada dia e cada noite insone, da terrível horizontalidade imóvel naquela cama de hospital. Lembro-me das dilacerantes dores nos ombros e no pescoço quebrado. Da macabra tração fixada no meu crânio, afastando as vértebras despedaçadas. Lembro-me da famigerada coceira na cabeça, zombando da minha impotente paralisia. Da alva sala de cirurgias e seus branquíssimos ocupantes fantasmas. Lembro do indizível sofrimento pós-cirúrgico. Da agonia da secreção nauseabunda proveniente dos pulmões infeccionados, da incapacidade de tossir ou de respirar sozinho. Da torturante sucção dos tubos, a extraírem a gosma purulenta do órgão doente. Da pavorosa sonda maculando minha uretra. Dos asquerosos antibióticos. Dos pesadelos macabros, nas poucas horas de turbulento sono induzido. Dos momentos de desespero. Da fadiga mental, causada pela abstinência de alimentos e sono. Dos tubos transparentes nas narinas, levando o oxigênio. Das agulhas eternas introduzidas nos pulsos imóveis e indolores. Do meu corpo cadavérico, morbidamente pálido e pele sobre os ossos, me conferindo uma aparência de múmia. E da apavorante febre, soberana, queimando tudo.

Sim, eu estive doente. Não obstante, não falo somente da doença do corpo, mas do catalisador que essa representou para a doença da alma. Das crises de desespero. Da descrença no futuro. Da incerteza da sobrevivência. Da serpente traiçoeira chamada depressão.

Sim, eu estive doente. Estive doente do corpo e da alma. Do corpo os médicos cuidaram. Minha alma ficou por conta do carinho da família e dos amigos. Das manifestações de apoio e solidariedade. Mas, principalmente, da certeza que me incutiram de que eu nunca estaria sozinho. E por me fazerem acreditar que eu faria falta. Isto fez a diferença entre o desistir ou prosseguir. Eu estive doente sim, mas como tudo passa, isso também passou, junto com o cicatrizante tempo. Isso foi há cinco anos.

Hoje eu sou um tetraplégico, mas não estou doente. Estou paralisado, não obstante, curado das doenças do corpo e da alma. Optei por viver e lutei para isso. Tive namorada. Fiz amor com ela: amor deficiente, amor tetraplégico, amor adaptado, amor que envolve mais os sentimentos que o próprio ato sexual, amor de entrega irrestrita, amor simplesmente. Eu estou feliz com o meu dia, com a minha noite. Eu estou feliz pelos meus sentidos, pelos meus sentimentos. Por ter percebido que para ser o que sou hoje, foi preciso esta cama, para me fazer parar e dar atenções às pequenas e mais importantes coisas da vida. Eu estou feliz por ter aceitado o aprendizado com serenidade. Pela ciência de ter vencido apenas uma batalha, a primeira de muitas que serão travadas no meu futuro paralítico. Eu estou feliz pelas armas mentais que possuo, pelo escudo psíquico e pela ausência do medo.  Eu estou feliz por estar pensando... Por não precisar do corpo para me mover nas asas da imaginação... Pelas amizades que tenho. Eu SOU feliz por estar VIVO. É manhã... Uma manhã qualquer... Por si só, especial, como tantas outras na minha vida.

Nardélio F. Luz

6 comentários:

  1. Ah, nós, e nossa transformação,vitimados pelo aci...dente.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Nós somos o que precisamos ser, temos a capacidade de nos adaptarmos, o que não podemos e viver lamuriando, pois isso não ajuda em nada e ainda afasta as pessoas.

      Excluir
  2. Obrigada por existir em minha vida.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É um prazer ter boas pessoas na minha vida e fazer parte da vida delas, Priscila.

      Excluir
  3. Ainda bem que você resistiu e venceu ou não teria eu conhecido esse amigo maravilhoso que você é obrigado meu querido por ser meu amigo quanto as adversidades nós vamos passando por elas e nos tornando cada vez seres humanos melhores bjos no seu lindo coração💙

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Também para mim é um prazer ter sua amizade, Sandra. Sim, são as adversidades que nos ensinam e fortalecem verdadeiramente, preparando-nos para a evolução que estamos destinados. Beijos.

      Excluir