terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Sobre o Livro "Vida Após a Vida"

Antes de qualquer outra coisa, preciso esclarecer que, conquanto a literatura seja uma de minhas paixões desde a infância, exceto por alguns esboços sonhadores na adolescência e cartas para namoradas na juventude, não era dado a escrever, e meu gosto pela escrita se acentuou somente após a tetraplegia. A concepção do livro ‘Vida Após a Vida’ partiu, a princípio, da necessidade de evitar a ociosidade. Nas primeiras horas, dias, semanas e meses após o acidente que paralisou meu corpo, foi a depressão a principal vilã que atacou implacavelmente, por vezes ameaçando minha própria sanidade; foi então que me vi na necessidade de ocupar minha mente com algo que pudesse combater as homéricas crises que me acometiam.

Tendo passado a maior parte da maioridade trabalhando fora, também era de fora a maioria dos meus amigos, e como muitos não podiam me visitar pessoalmente, ligavam ou escreviam. A precariedade financeira não permitia retornar as ligações e eu me via na necessidade de responder as cartas e até ensaiei algumas com as ajudas ora do meu sobrinho Douglas, hora do meu irmão Geraldo. Contudo, ainda que ambos nada dissessem, eu percebia a resistência deles quanto a usar a caneta, e foi então que decidi encontrar um meio alternativo para resolver o problema.

Aos poucos fui recuperando parte da musculatura dos ombros e dos braços, que me permitiam alguns restritos movimentos. Como meus dedos e a maior parte dos músculos são paralisados, não consigo escrever a punho. Assim, comprei uma máquina de escrever eletrônica, pedi ao meu irmão que fizesse uma mesinha – tipo de café da manhã –, levantasse a cabeceira da cama – modelo hospitalar – e prendesse tubos de caneta com esparadrapo nas palmas das minhas mãos. Como meus bíceps voltaram a funcionar, os usava para erguer os braços e, ao soltá-los, a força da gravidade fazia o resto. Inicialmente os tubos batiam de forma desajeitada nas teclas, mas as acionavam, e aos poucos fui aprendendo a coordenar os poucos movimentos que me restaram. Como minha lesão é C5 no lado esquerdo e C6 no direito, obviamente tenho menos controle no esquerdo e uso mais o braço direito – outra providência da minha boa estrela, já que sou destro. Desta maneira comecei a escrever, no início “catando milho”, depois fui superando as dores e aperfeiçoando cada vez mais aquela técnica, deficiente, mas eficaz. Foi um processo demorado, que exigiu muito esforço e, principalmente, muita paciência. Mas enfim, a persistência levou-me ao êxito.
Já escrevendo cartas na máquina, quando meu tio João e minhas adoráveis primas Kátia, Tânia e Nísia me presentearam com meu primeiro microcomputador, só precisei mandar adaptar uma mesinha com rodas – que pudesse vir até minha cama – e aprender a usar o programa Word para ir um pouco além das missivas.

Durante uma das visitas da Kátia, mencionei a ideia de escrever minhas memórias, apenas para manter a mente ocupada, pois sempre acreditei na máxima popular que “cabeça vazia é oficina do diabo” e aquele era um dos poucos recursos que me restara para manter o cérebro em atividade. Minha prima e amiga não só adorou a ideia, como disse que já vinha pensando nisso, apoiou e foi a principal incentivadora para que eu a colocasse em prática.

Tendo completado o ensino fundamental num supletivo, meu português era horrível, mas com a ajuda do corretor do Word, comecei a escrever devagar, dia sim, dois dias não, duas a três páginas por dia. Às vezes eu me empolgava e passava uma semana inteira escrevendo, noutras passava meses sem sequer abrir o texto. Aquilo para mim era apenas uma terapia ocupacional e eu não tinha qualquer pretensão de publicar, portanto, nenhuma pressa.

Quase desisti quando, devido a minha imperícia no micro, perdi irremediavelmente as 50 primeiras páginas já escritas. Mas, após alguns dias de luta interna, concluí que se fosse desistir diante da primeira dificuldade, era melhor nem projetar nada para aquela minha nova vida tão limitada. Assim, num momento de êxtase incutido por uma repentina força de vontade, resolvi recomeçar e tentar fazer ainda melhor do que da primeira vez. 

Contudo, a segunda tentativa de escrever o livro já possuía novos objetivos. Em convívio com outros deficientes físicos na Aparu – Associação dos Paraplégicos de Uberlândia –, ou mesmo fora da instituição, percebi que alguns deles, por um motivo ou outro, não aceitavam suas condições e não poucas vezes se revoltavam. Outros – com lesões medulares completas e irreversíveis – se refugiavam na esperança utópica de voltar a andar, muitas vezes deixando de viver o presente em prol de um futuro que podia ou não acontecer. E, pior, conheci um que achava que a vida sobre a cadeira de rodas não valia a pena; e me apavorei quando soube – através de fonte não muito confiável – que esse tinha chegado ao extremo de tentar subornar uma criança, para que essa comprasse e lhe desse veneno para ratos.

Aquilo me fez pensar no porque d’algumas pessoas possuírem visões tão limitadas, a ponto de não reconhecerem os próprios valores e sequer conseguirem enxergar os próprios horizontes. Desde que podia me lembrar, eu vivia pelo princípio de que há de se ter determinação e força de vontade para mudar aquilo que é possível, mas também há de se ter humildade para aceitar o imutável e seguir em frente, apesar das adversidades.

Não fosse o bastante, comecei a perceber que nas ruas, o preconceito maior vinha de pessoas que não tinham noção do que é a vida e o cotidiano de um deficiente. Não poucas vezes adentrei estabelecimentos comerciais e os atendentes se dirigiram ao meu acompanhante, como se por ter o corpo paralisado, meu cérebro também o fosse e eu não tivesse condições de responder por mim mesmo. Aquilo me irritava e acabei por lembrar que nos tempos de andante eu mesmo já tinha cometido tais erros, exatamente por não ter a menor noção do dia a dia das pessoas com deficiências.

Foi a partir dessas constatações que comecei a me perguntar se não podia fazer nada por tais pessoas. Nem tanto por elas, mas por mim mesmo, já que ser útil a alguém beneficia muito mais a quem ajuda do que ao ajudado. Não havia, portanto, qualquer nobreza no meu gesto, mas a intenção egocêntrica de ser útil enquanto combatia a ociosidade. De qualquer forma, aquilo foi um incentivo a mais. Então, já em contato com a Internet – onde ocasionalmente fazia palestras e escrevia textos sobre as várias facetas dos deficientes físicos –, decidi levar mais a serio o livro e, inclusive, lutar para publicá-lo.

Entre um ou outro poema e pequenos contos que escrevia, finalmente terminei o livro, aproximadamente cinco anos após tê-lo iniciado. Enviei cópias do original a algumas pessoas de confiança, ligadas à educação e literatura e – exceto pelo tamanho do texto –, de uma forma geral o aprovaram.

Então mandei o texto e os detalhes da capa a duas profissionais – amigas de uma amiga minha –, e ambas fizeram bons trabalhos de pré-revisão e capa. Resolvi eu mesmo fazer uma nova revisão e aproveitar para dar uma “enxugada” geral a fim de reduzir o texto, sem, no entanto, comprometer a narrativa. As quase 700 páginas foram reduzidas a 480 e, posteriormente, a belíssima diagramação de um grande profissional de Belo Horizonte deixou o texto final com 384 páginas.

Pronto, a primeira etapa estava concluída. Alguém, por motivo religioso, chegou a sugerir a mudança do título, mas não tenho vínculo com qualquer religião e me recusei a fazê-lo. Outros disseram que eu deveria reduzir o livro à metade, uma vez que textos extensos eram inaceitáveis. No entanto, afirmei que não “aleijaria” minha história e, ainda que não conseguisse publicá-la, de modo algum a privaria de detalhes importantes para a plena compreensão, com o objetivo de fazer um livro menor. Eu havia conseguido a façanha de harmonizar capa, título e texto da minha obra e era isso que importava.

Entrementes comecei a maratona de buscas por uma editora e foi quando descobri o porquê de haver tantos bons escritores no Brasil e tão poucos conseguirem publicar.

O tempo passou e eu já estava naquela labuta em busca de editora há aproximadamente três anos, inclusive havia gasto o que não tinha com o envio de cópias impressas há várias delas, sem qualquer resultado positivo. Sempre fui persistente, mas por mais de uma vez pensei em desistir e não fosse o incentivo e apoio incondicional da minha amiga-flor, Aninha, o teria feito.

Deus é muito bom, e, de uma forma ou de outra, sempre beneficia àqueles que realmente lutam pelos seus objetivos. Não bastassem os anjos que Ele me deu como família – que me auxiliam incondicionalmente –, também me presenteou com amigos-anjos. E foi a amiga Vanessa – um anjo realizador de sonhos –, que colocou fim a minha penúria, se oferecendo gentilmente para patrocinar a primeira edição do ‘Vida Após a Vida’.

Foi quando descobri uma outra faceta ainda mais desanimadora: a dificuldade para ser introduzido no mercado literário brasileiro. Mesmo o autor pagando, algumas editoras – sobretudo as de maior projeção – fazem exigências absurdas ou cobram preços exorbitantes pela publicação e comercialização dos livros. Então optei pela publicação independente, ficando a meu próprio cargo divulgar e comercializar os livros.

Eu seria hipócrita se dissesse que a parte financeira da venda não é importante, pois sem dúvida é. Mas, muito acima disso, a concepção e publicação do ‘Vida Após a Vida’ é um sonho, e, segundo acredito, a realização de um sonho não tem preço. Uma de minhas intenções é alcançar a maior quantidade possível de pessoas através do livro e mostrar a elas que, muito mais importante do que a corrida desenfreada atrás de lucros para aumentar seu capital e adquirir perecíveis bens materiais, é cuidar do espírito, pois esse sim, é realmente imperecível e digno de atenção e cuidados; e uma das formas de se fazer isso é viver com humildade e aceitar seus semelhantes como iguais, ainda que esses possuam alguma diferença... Outra é alcançar os desesperados, exemplificando a eles que pode haver felicidade e viver plenamente, apesar das deficiências.


Nardélio F. Luz

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