segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Vida de Tetraplégico

Me foi pedido para escrever um artigo sobre tetraplégicos, e não obstante eu seja um representante da classe, não sei escrever artigos – em verdade não sei nem por onde começar. Contudo, no egocentrismo do meu conhecimento de causa, sei falar informalmente de mim e das pessoas que conheço que também o são. Isto, por si só, dá um texto e tanto, pois embora pareçamos todos iguais aos olhos preconceituosos dos leigos e soframos as mesmas sequelas, a individualidade humana não permite que existam dois iguais; somos, portanto, no máximo parecidos em físico e pensamentos e com necessidades similares. Mas não somos apenas isso...

Para começar, devo esclarecer – para a grande maioria que não sabe – a diferença entre o paraplégico e o tetraplégico. Uso como base para minha narrativa apenas as deficiências por lesão medular, porém, elucido que existem deficiências físicas causadas por outros fatores como Poliomielite, AVC, Paralisia Cerebral, etc. – cada qual com suas peculiaridades.


O paraplégico, em termos simplórios, é aquele deficiente cuja medula é lesionada a nível lombar ou torácico. Ele perde a coordenação-motora e sensibilidade das pernas, porém mantém o controle do tronco e movimentos e força dos braços e das mãos. O paraplégico consegue tocar a cadeira de rodas sozinho e transpor obstáculos, fazer transferências cama-cadeira-carro e vice-versa, dirigir, praticar a maioria dos esportes adaptados, assim como todas as outras atividades de vida diária; o que lhe permite uma vida quase que totalmente independente. Conheço paraplégicos que moram sozinhos e se viram muitíssimo bem.


Tetraplégico é aquele que tem a medula lesionada a nível cervical – pescoço – e perde a mobilidade de quase todo o corpo, sendo, portanto, dependente de outras pessoas para tarefas simples como se banhar, alimentar, evacuar, fazer transferências e todo e qualquer tipo de atividade física. Simplificando: o tetraplégico é totalmente dependente de outros para sobreviver. A tetraplegia, entretanto, se dá em vários níveis – de acordo com a altura da vértebra lesionada. Há aqueles que ficam totalmente paralisados e dependem de respiração artificial para sobreviverem; aqueles que perdem os movimentos das mãos e parcialmente dos braços – meu caso – e há mesmo aqueles cujas lesões são incompletas – com passagem de alguns impulsos cerebrais –, que permitindo sensibilidade parcial e certa coordenação-motora, o que os torna quase paraplégicos.


Não tenho o menor constrangimento em afirmar que, como tetraplégico, minha principal frustração é não ter ficado apenas paraplégico; e até me arrisco a dizer – sem medo de equivocar-me – que é a frustração de todo tetra, pois de todos os desconfortos causados pela quase completa imobilidade, sem dúvida o pior deles é a extrema dependência. Sobretudo porque nenhum ser humano nasceu preparado para viver duas vidas – e quem cuida de um tetra acaba por viver sua e a dele. E, conquanto a pessoa seja paciente e resignada, há horas em que o estresse a domina e acaba descarregando no dependente. 


Não estou insinuando que a vida do paraplégico é fácil, em absoluto não é, pois a discriminação e o preconceito não escolhem nível de lesão. Só quero deixar claro que o sonho primário do paraplégico é voltar a andar e o sonho primário do tetra é ser para.


Não tenho a pretensão de alongar muito este texto, mas não dá para falar de lesão medular sem mencionar as piores das sequelas – que são invisíveis aos olhos –: as quase esquecidas complicações internas. Geralmente, quando se vê um deficiente na rua, imagina-se que seu único problema é a imobilidade. Essa ideia, entretanto, é completamente equivocada, uma vez que as complicações internas são muito piores que a simples falta de movimentos. Bexiga e intestinos não funcionam, os rins ficam comprometidos, o coração tem que trabalhar dobrado para bombear o sangue nas áreas do corpo onde não mais têm músculos para ajudá-lo, a circulação fica comprometida, a falta de sensibilidade nos órgãos sexuais não permite que ejaculemos ou tenhamos orgasmos – ao menos na maioria dos casos. E – como se não bastasse – ainda temos que tomar extremos cuidados para evitar infecções de urina e as famigeradas escaras.


Também não poderia abordar este tema sem mencionar meu ídolo Christopher Reeve, popularizado nas telas do mundo inteiro como o melhor interprete para o maior herói que os quadrinhos já conheceram: o onipotente Superman. Reeve não foi Super-homem apenas na ficção, mas o foi principalmente na vida real. Em 1995, o ator caiu de um cavalo, quebrou o pescoço e ficou tetraplégico. Sua lesão foi bastante alta, obrigando-o a ter que viver sob o julgo de um respiradouro artificial e só conseguindo se movimentar do pescoço para cima. Após o acidente, passou meses fazendo fisioterapia, o que permitiu que respirasse por períodos cada vez mais longos sem a ajuda de aparelhos e ate conseguisse outras melhoras significativas por pura força de vontade e um esforço descomunal. Segundo se sabe Reeve no início até pensou em cometer suicídio, mas não o fez em consideração aos filhos, que o amava e queria junto a eles. Daí, nunca desistiu de voltar a andar e levar uma vida normal. Assim, criou a “Fundação Christopher Reeve para a Paralisia” e – entre outras coisas – foi pioneiro nas polêmicas pesquisas com células-tronco. Embora tais pesquisas tenham sido diversas vezes barradas pelo falso moralismo religioso, o ator não desistiu e gastou rios de dinheiro e toda sua energia, lutando indubitavelmente contra as adversidades e possibilitando o avanço das pesquisas ao máximo permitido pela ética. Não é errôneo afirmar que, se as pesquisas com células-troco avançaram até serem aprovadas em alguns Congressos – derrubando padres, bispos e pastores demagogos –, grande parte desse mérito é do inesquecível “Super-homem”. Infelizmente Christopher Reeve veio a falecer devido a um ataque cardíaco após um coma, sem ter realizado seu maior sonho: voltar a andar. Mas, ainda assim, continua um herói, pois seu esforço não foi em vão e seu legado propiciará o retorno à liberdade para muitos de nós. Em especial para as gerações futuras. E se Deus quiser – e ele sempre quer –, em bem pouco tempo.


Como Reeve, ou até mais que ele – pela falta de recursos financeiros e apoios físicos e psicológicos –, existem milhares de super-homens e supermulheres por aí. Belos exemplos são os para-atletas, que mesmo sem patrocínio adequado e quase sem apoio da mídia, superam seus limites e realizam feitos memoráveis, deixando no chinelo os atletas “normais”, que são fortemente patrocinados e endeusados pela mídia.


Embora vergonhosamente a preconceituosa sociedade nos veja como parias, não estamos mendigando ou buscando a execrável pena de ninguém. Muito pelo contrário, matamos dez leões todos os dias para termos nosso lugar ao Sol. Citando o slogan da Aparu – Associação dos Paraplégicos de Uberlândia –: “Subir na vida degrau por degrau?... Que nada, prefiro subir pela rampa.” Queremos rampas adequadas para adentrarmos os estabelecimentos comerciais e órgãos públicos. Queremos rampas para subir nas calçadas e livre acesso nessas, a fim de diminuirmos o risco de sermos atropelados. Como seres pensantes e contribuintes que somos – e por mais absurdo que pareça, nossos impostos são ainda maiores, pois qualquer artefato para deficiente é absurdamente caro –, queremos igualdade em concursos públicos e a garantia de que nossos direitos constitucionais realmente saiam do papel e sejam executados. Queremos ser respeitados como seres humanos iguais. Queremos viver em paz... Apenas isso, nada mais.




Nardélio F. Luz

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